A ode sinestésica de Filipe Catto

Em processo constante de reinvenção, artista revelou em entrevista ao HOJE a força motriz de seu novo trabalho. Para ele, máscaras são dispensáveis e seu ser artístico é um ato de resistência

Postado em: 12-12-2017 às 21h00
Por: Guilherme Araújo
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Em processo constante de reinvenção, artista revelou em entrevista ao HOJE a força motriz de seu novo trabalho. Para ele, máscaras são dispensáveis e seu ser artístico é um ato de resistência

Guilherme Araujo**

Mas atenção / aumente o rádio / minha canção vai acender / o teu silêncio como um raio. Foi entoando versos poderosos, vestido em uma calça de paetês e acessórios chamativos que Filipe Catto, munido de seu olhar bem delineado e voz visceral, fez seu retorno à música no fim do mês de novembro. Gaúcho de nascimento, mas paulista de coração (uma evidência constatada no sotaque despretensioso ao falar ao telefone), o músico entrega ao público o disco CATTO (Biscoito Fino), já considerado pela crítica um dos melhores do ano – fato que faz jus ao título, escrito em maiúsculas. 

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No ápice de sua versatilidade, Filipe afirma viver uma fase mais solar: “Esse disco é todo um processo resultado de experiências. Foi algo muito lúdico. Nos 9 meses em que o “gestei”, coloquei as roupas que gostava, cantei as músicas que faziam com que me sentisse bem e me cerquei de gente muito bacana. Quis experimentar e ver até onde iria. E foi lindo”, relembra.

Em meio a intersecções de cantos oníricos e letras carregadas de festim, o que se percebe é um espectro revelador de auras duais que, ao mesmo tempo em que são delicadas, são também muito fortes. Abusa de influências do rock, de elementos eletrônicos e do próprio R&B. Guiado por suas experiências, ele brinca, dizendo que o álbum nasceu sob o sol de Sagitário, aspecto que denota um processo hereditário de influências de sua paixão pela astrologia. O resultado disso reverbera em faixas como a sensorial Torrente ou a catártica Lua Deserta, em que flerta de forma quase psicodélica com o mundano e o sagrado, levando o ouvinte a embarcar em uma das várias construções cinematográficas a que propõe. 

Assumidamente um aficionado, explica sua relação com os astros: “Só acredito no universo, nas forças mais poderosas vindas do magnetismo, do desejo humano e do amor. Em resumo, na irradiação de coisas boas. Isso é o que fez esse disco, assim como o meu ser artístico, que vejo como um ato de resistência. Por isso, definitivamente me recuso a viver em um planeta em que não haja mágica”. Daí surgiu também a ideia de incluir estrategicamente faixas de outros autores (representando uma por uma os 7 raios) e três de sua autoria (a trindade). 

De fato, somente mágica seria mesmo capaz de trazer a cada uma das interpretações tanto domínio, como acontece na embriagante Eu Não Quero Mais. Derradeira canção do disco, a letra narra, sem um destinatário específico, a epifania libertadora de se abdicar de sentimentos pífios. Catto ainda faz votos escrachados a quem já não oferece nada além de um tipo de desprezo velado. 

Os frutos são sentidos de forma tão efetiva quanto nas deliciosas Arco de Luz e É sempre o mesmo lugar, esta última regida por um efeito que lembra a experimentação de David Bowie em sua emblemática era Berlim. Em um retrospecto com sabor de aventura à letra de seu primeiro grande sucesso, a canção Saga, a sensação que se tem ao terminar de ouvir CATTO é a de estar literalmente encharcado de estrelas após uma viagem frenética e corajosa pelo universo.

Simbologias

Canção de Engate, uma regravação do ícone LGBT português António Variações, já fazia parte do repertório de shows de Filipe desde o início de 2017. Bebendo diretamente na fonte de influências libertárias não só musicais, mas igualmente visuais, aplica a mesma máxima ao ensaio fotográfico feito para o disco. Em uma conjuntura lírica, aparece na capa de braços abertos – uma imagem que poderia permiti-lo ser o que quisesse: em um momento, uma deusa queer, coroada por uma justaposição de seu corpo a uma roda gigante tradicional dos parques de diversões americanos; em um piscar de olhos, uma estrela do rock vinda de outra galáxia.

Para ele, a experiência foi divertidíssima e o saldo desse dia, em que em que comemorava seu aniversário de 30 anos, é o que mais importa: “Foi uma verdadeira viagem. Após 10 anos afastados de uma amiga de infância que viveu comigo um tempo em Nova York, resolvemos nos ver novamente na cidade”. Ao lado de outra amiga, a fotógrafa Lorena Dini, Catto relembra seu passeio por Coney Island: “Saímos para fazer as fotos e fui confundido muitas vezes com uma celebridade problemática. Quando me questionavam, eu respondia que era um artista. Também achavam que eu era uma sereia ou uma cigana do parque de diversões. E as fotos são bonitas porque, de fato, as memórias são bonitas também”, diverte-se.

Mesmo dispensando definições e rótulos, Filipe Catto afirma ter uma identidade queer, a qual defende com orgulho: “Quando era adolescente, isso era demasiadamente underground. Elementos dessa cultura eram soterrados pelo machismo, por uma mentalidade que conhecemos bem – e detestamos tanto. A identidade que mostro agora, de fato como ela é, é algo universal. ” 

Livre de classificações assume que o objetivo nunca foi ser um símbolo. No entanto, enquanto membro ativo da comunidade LGBT, observa o fato como motivo de orgulho: “Estou intensamente ligado às atividades da causa e atrelado a posicionamentos progressistas, humanitários e de empoderamento. Não acredito em minorias”. Para ele, é preciso pensar que existe além do queer um indivíduo que se expressa: “Isso é só mais um elemento da nossa sociedade que é tão plural”, explica. Dono de si próprio, Catto ainda reforça que seu conceito de imagens dialoga diretamente com questões pessoais: “É queer e não é. É tudo e não é. Trata-se de uma questão de autoinvenção”. 

A androginia, presente também em trabalhos anteriores, agora aparece na faixa Só Por Ti, uma parceria com a amiga de longa data Zélia Duncan. Responsável pelo nascimento da ideia de produzir um disco, Catto explica que foi nesse processo artístico que se viu rodeado por uma sensação ímpar de “desmontagem”: “Me revelei sendo exatamente isso e agora me sinto muito exposto. Acho ótimo! Sinto como se estivéssemos tirando mascaras. Essa história de tirar as camadas e ir mostrando maior profundidade é minha grande viagem artística”. 

Conexões

Usuário assíduo das redes sociais, em que faz questão de responder a cada um dos comentários de seus milhares de seguidores, Filipe revela que se surpreende com o alcance da internet e enxerga a tecnologia, mais do que nunca, como uma aliada do artista. Diz com entusiasmo amar as possibilidades de expressão: “Esse disco foi feito de uma forma muito tranquila graças à tecnologia. Eu estava viajando e trabalhando com gente do mundo todo ao meu redor. Tive um apoio de gente espalhada por todos os cantos, o que constituiu um disco cigano”.

Em tempos de crise do mundo material, tem verdadeira adoração pelas interações e os desdobramentos que as redes sociais promovem: “É uma delícia. Estou documentando o meu processo o tempo todo, usando a linguagem que quero e sendo essa pessoa que sou integralmente, no disco, clipe, no meu dia a dia, ou com os meus fãs. O público não quer ser só”, pondera. Ele alerta que o padrão e o critério de relação com o artista mudaram muito e a identificação pessoal é algo forte: “A dinâmica agora é outra. É preciso lutar para uma quebra de barreiras e como artista, sou, portanto, uma ovelha negra. Jamais poderia ser uma pessoa conformada”.

Apaixonado pela arte de uma maneira geral e enxergando a música como algo revolucionário, conta sobre a ideia de ilustrar o disco com sons, imagens e texturas: “Existia na minha cabeça um percurso”. Em busca de resultados atmosféricos, admite que sentia o trabalho de maneira intuitiva: “As músicas foram aparecendo e montando esse quebra-cabeça, influenciado pela literatura, teatro ou pelo cinema”. Fã do espanhol Pedro Almodóvar, entre a lista de influências, que diz terem surgido ainda na adolescência quando buscava trilhas sonoras de filmes, estão nomes de peso como Björk, Elis Regina, Madonna, PJ Harvey, Jeff Buckley e os irmãos Caetano e Bethania – que define como Deus.

Além de divulgar o disco e colher os frutos de seu trabalho, ele planeja cair na estrada em 2018. Da última vez que esteve em Goiânia, em 2016, no festival Go Rock & Afins, trouxe o show Tomada. Assume adorar o público goiano: “Vou sempre a Goiás. Já conheci Goiás Velho, Pirenópolis e, sabe que uma das coisas mais importantes, é que o processo terapêutico que iniciou todo esse disco começou em Abadiânia, quando estive na cidade junto a Serena Assunção”. Catto ainda destaca que o contato com a cidade, com as pessoas e a realidade do local foi algo absolutamente transformador: “Acho o lugar mais incrível do planeta”.

Depois disso, em ordem cronológica, a última vez em que saiu pelo país em apresentações aconteceu em meados deste ano, com o show Over. A apresentação, de formação minimalista, levava somente voz e dois violões: “Foi algo espontâneo, um projeto antigo que eu queria muito fazer e acabou acontecendo enquanto já estava em estúdio. Valeu muito a pena, porquê foi como um aquecimento para o que estava por vir”.  O show ainda trazia Catto em diálogo com elementos performáticos, até então inéditos em seu trabalho. No repertório, canções despretensiosas mescladas entre sucessos seus, clássicos da MPB e interpretações expressivas, como a dolorosa Infiel, do astro sertanejo Marília Mendonça: “Criar um espetáculo é isso, é misturar todas as coisas que me tocam dentro de uma atmosfera. E o que eu senti que eu queria fazer com esse material. Existe uma história e uma viagem sem contada”.

“Eu não quero mais pouco”

O trabalho do artista, considerado uma das vozes mais
emblemáticas da nova leva da MPB, quebra o hiato de 2 anos sem material inédito. A fim de celebrar a vida, o amor e as experiências,
embasado por sons quase idílicos, Catto comentou para O Hoje cada uma das 10
faixas de seu novo trabalho:

Como Um Raio

“Conheci Como Um Raio há muito tempo em um disco do Rômulo
Froes. Quando cogitei fazer um álbum, pensando em uma abertura, uma introdução,
foi a primeira ideia que me veio à cabeça. Acho que a faixa carrega toda uma
dramaticidade, é cinematográfica, é nova, é velha, é atemporal. Amo essa
música.”

Lua Deserta

“Sempre quis ter uma música como Lua Deserta. Recebê-la me
fez ficar muito feliz, porquê acho que o simbolismo e as imagens que
esteticamente essa canção propõe são imagens muito importantes, muito fortes
pra mim. Ela me leva para um lugar que eu sempre quis ir e a amo de paixão
porquê ela vai a fundo, como uma onda na pedra. É uma música que promete e
cumpre, de forma natural e orgânica.”

Canção de Engate

“Esta é uma canção de amor e acho que uma das músicas mais
belas e românticas que já cantei. Conheci em Portugal, quando me apresentei lá
em 2014 e fiquei com ela na mente desde então. Quando retornei ao país neste
ano e cantei nos shows, foi uma das primeiras músicas que decidi gravar no
disco novo.”

Faz Parar

“Esta faixa fez parte do repertório do meu último show, Over,
e também faz parte do disco do Rômulo Fróes. É uma música não podia faltar no
repertório por ser deslumbrante.”

Só Por Ti

“É o ponto de partida de CATTO, porquê a ideia inicial era
lançar somente um single. Foi a primeira parceria que escrevi ao lado de Zélia
Duncan. Cantamos juntos em alguns shows e quando fomos fazer o disco, não tinha
a menor possibilidade de deixá-la de fora.”

Um Nota Um

“Um Nota Um foi um presente. Trata-se de uma música inédita
que eu ganhei do Bruno C… e que também já tinha cantado no espetáculo , que
eu fiz com Simone Mazzer. Ela entrou no disco com essa versão transfigurada. É
o que eu chamaria de um “samba trans”.

Arco de Luz

Arco de Luz é uma paixão antiquíssima, escrita por Marina
Lima e Antônio Cícero. Sou louco por essa música há muitos anos e certo dia
tive um insight. Me lembrei dessa faixa e desde então não parei de cantá-la.
Acho que de fato era para ser. Fiquei muito feliz de poder gravá-la, pois a
vejo como uma música muito onírica.”

Torrente

Torrente é uma parceria com Fabio Pinczowski.
É uma música muito forte, sequer me lembro o processo de composição dessa
letra, pois é muito sensorial para mim. É uma música cheia de imagens, com uma
mensagem que fala de conexão espiritual e de ancestralidade.”

É sempre o mesmo lugar

Mais uma música inédita que recebi de César e Rômulo. Sou
absolutamente apaixonado por ela, é uma faixa muita elevação. Foi uma das
últimas que gravamos e fiquei muito emocionado com o arranjo dela. Há nele a
tradução de completamente tudo o que eu gosto em música. É impecável, como uma
escultura de cristal.

Eu não quero mais

“Essa faixa é um escândalo! Fui a um show do Vitor Araujo e
conheci o Igor de Carvalho, compositor da faixa. Estávamos em um taxi indo para
um bar e ele cantou a música para mim ali mesmo. Achei tudo de uma elegância
ímpar e a quis na hora. Eu acho que tem muita contundência, muita inteireza no
refrão. Dentro daquela viagem, há uma pluralidade de significados e fiquei
muito feliz de ser a pessoa escolhida para cantá-la. Trata-se de um momento de
afirmação de si, de não buscar pouco e querer viver o máximo possível das
coisas mais maravilhosas.”

CATTO está disponível no Spotify e em todas as plataformas
de streaming. 

** Guilherme Araujo é integrante do programa de estágio do jornal OHoje.com

Foto: Lorena Dini

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