O ministro e os mitosque ele alimenta para fazer negócios – 2

Sem o arrocho desejado pelos mercados e por seu ministro, disparam economistas e analistas de sempre, as incertezas tenderiam a escalar. - Foto: Reprodução

Postado em: 21-11-2020 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Sem o arrocho desejado pelos mercados e por seu ministro, disparam economistas e analistas de sempre, as incertezas tenderiam a escalar. - Foto: Reprodução

A
inoperância ou incapacidade da área econômica federal na construção de
propostas e políticas razoáveis para enfrentar o quadro fiscal e o
endividamento do setor público apenas reforça o caráter alarmista das
declarações mais recentes do ministro dos mercados e de seus assessores. Uma
das “sacadas” mais recentes da turma do senhor Paulo Guedes sugere que a perda persistente
de valor do real frente ao dólar teria como causa os desequilíbrios entre
receitas e despesas do governo e que, por isso, seria necessário impor ao País
um arrocho fiscal, já a partir de 2021, preservando-se o tal teto dos gastos –
uma política burra, como descreve o economista-chefe do Banco Fator,
José Francisco de Lima
Gonçalves, porque impede que o governo atue de forma mais efetiva contra a
retração da economia.

Sem
o arrocho desejado pelos mercados e por seu ministro, disparam economistas e
analistas de sempre, as incertezas tenderiam a escalar, afastando investidores,
estimulando a fuga de dólares e levando a um aumento da inflação que, mais
adiante, deveria obrigar o Banco Central (BC) a retomar a política de juros
altos.Como acontece quase sempre que um dos economistas da entourage do
ministro (ou o próprio) abre a boca, não há evidências fortes de uma relação
imediata entre os esforços realizados pelo setor público para enfrentar a
pandemia e a desvalorização vigorosa do real. É sempre recomendável relembrar
que o aumento inédito do déficit no setor público neste ano (e, portanto, de
sua dívida) está diretamente relacionado às medidas adotadas para socorrer as famílias
mais vulneráveis, empresas e seus empregados.

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A
primeira ressalva

Mas
será que a cotação do dólar em reais tem subido por culpa do rombo no setor
público? Em defesa de sua “tese” bastante controversa, a equipe econômica tem
mostrado que o real tem sido a moeda que mais sofreu desvalorização na
comparação com as demais economias. Num estudo exaustivo, cobrindo praticamente
duas décadas, o economista Rodrigo Toneto, da Faculdade de Economia e
Administração da USP, demonstra com dados a fragilidade da argumentação
oficial. “Embora raramente feita”, diz ele, “uma primeira ressalva necessária é
o fato de que o real é consistentemente a moeda emergente mais volátil”. Não se
trata, assim, de um fenômeno específico de 2020 “ou de momentos especialmente
arrojados do ponto de vista fiscal”.

Balanço

·  
Mesmo
sem incluir 2020, o real tem sido “a moeda que mais oscila dentro ano”. Ao
longo das duas primeiras décadas deste século, aponta Toneto, “apenas em quatro
anos a volatilidade do real não foi superior à média dos países emergentes”analisados
no trabalho. Entre 2001 e 2019, “a moeda brasileira oscilou 61,6% a mais do que
o conjunto de países de referência. Até agora em 2020, a dispersão adicional da
moeda brasileira, embora acima da média (74,6%), é menor do que em outros oito anos
da amostra”.

·  
Vale
dizer, a volatilidade do real, mesmo em um ano anômalo como este, tem sido
menor do que em outros períodos. Em 2005, por exemplo, a variação do real foi
159,6% maior do que a flutuação média das moedas dos países emergentes. “Parece
difícil argumentar diante do quadro fiscal brasileiro dos últimos 20 anos que
este é o fator preponderante na maior volatilidade cambial”, propõe o
economista (até porque as receitas do governo foram superiores às despesas
primárias durante dois terços daquelas duas décadas).

·  
Toneto
recorre ao economista Pedro Rossi em busca de uma explicação para essa
“especificidade brasileira”. Segundo ele, três elementos diferenciam o mercado
de dólar no Brasil frente aos demais emergentes: maior liquidez nos mercados de
derivativos (dólar futuro, por exemplo) do que no mercado à vista; “predomínio
do mercado organizado” nos derivativos negociados aqui dentro; e o peso do
mercado “offshore” (fora do País) nas transações com dólar, representando 57%
do mercado de câmbio no Brasil em 2014 (o que configura um mercado altamente
especulativo).

·  
“Pode
ser plausível que o quadro fiscal brasileiro provoque alterações na taxa de
câmbio, mas isso constitui menos o elemento estrutural e mais um elemento
conjuntural potencializado pelas condições gerais do mercado do real”, sugere
Toneto.

·  
Ele
lembra ainda que o real havia registrado desvalorização de 34% entre janeiro e
maio deste ano, num dos piores momentos da pandemia, agravada pela crise
institucional detonada pelo próprio presidente. Na média dos países emergentes,
a desvalorização chegou a 11,0%. Mas entre o final de maio e setembro, quando
se intensifica o debate sobre o ajuste nas contas públicas, o real caiu 5,8%
diante de uma desvalorização média de 2,4% para as demais moedas.

·  
Toneto
não tem dúvida de que “uma política fiscal que ancore expectativas ajudará no
processo de estabilização cambial”, mas não resolverá, de forma isolada, os
problemas estruturais no mercado de câmbio. “O repique nos preços dos alimentos
exige uma estratégia de política cambial e de regulação de estoques, não um
aumento da taxa de juros ou aperto fiscal”, argumenta ainda. A retórica
“hiperinflacionária” adotada pela equipe econômica bloqueia o debate e a
escolha de instrumentos de política econômica mais efetivos para enfrentar os
“desafios econômicos decorrentes da pandemia”. E “um remédio que é recomendado
a todo momento independentemente do estado do paciente deve gerar dúvidas.
Cloroquinas econômicas não vão nos levar à lugar algum”, sustenta.

 

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