Coluna

Emissão de dinheiro dispara e a inflação não se move (e até cai)

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 01 de setembro de 2020

“O
mundo gira e a Lusitânia roda”, diz um famoso texto publicitário produzido,
evidentemente, em terras lusitanas para animar os negócios de uma
transportadora centenária. Em outro contexto, a sentença costumava ser repetida
pela professora Maria da Conceição Tavares, a economista portuguesa que adotou
o Brasil como seu país e tornou-se desde sempre crítica contundente do “austericídio
fiscal”, encarnado nos últimos e tenebrosos anos como única possibilidade de
sucesso por uma economia que se arrasta desde a recessão de 2014/2016.

As
crises costumam romper tabus e desmentir certezas até então consideradas
absolutas. Pode não parecer, mas costuma acontecer por aqui. Não que isso afete
a retórica dos mercados e de seu ministro preferido. Portanto, se você é daqueles
que acreditam que as emissões de moeda podem levar a uma explosão dos preços e,
numa sequência “inevitável”, a uma fuga de investidores (que já estão saindo,
mas por outros motivos) e à necessidade de retomar a política de juros altos,
saiba que as emissões já dispararam. Mais: vinham crescendo num ritmo acima da
inflação mesmo antes da crise sanitária provocada pelo Sars-CoV-2, antes
explodir nos últimos meses. Nem por isso sobreveio o “caos inflacionário”
antecipado pelos arautos do austericídio.

Os
dados estão nos relatórios (ou “notas para a imprensa”) emitidos regularmente
pelo Banco Central (BC), assim como nas pesquisas realizadas pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para aferir o comportamento dos
preços que formam o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). A
base monetária, quer dizer, grosso modo, o saldo do total de dinheiro emitido
pelo BC experimentou um salto de 37,75% entre o final de março e julho deste
ano, subindo de R$ 307,560 bilhões para R$ 423,675 bilhões – uma elevação,
portanto, de quase R$ 116,114 bilhões no período, algo como 1,6% do Produto
Interno Bruto (PIB) estimado pelo BC para os 12 meses encerrados em julho deste
ano. Ainda na comparação com o PIB, o saldo das emissões de moeda avançou de
4,19% em março para 5,90% em julho.

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Muito abaixo da
meta

O
IPCA mensal chegou a cair de 0,25% em fevereiro para 0,07% em março,
despencando na primeira quinzena de maio (IPCA-15) para -0,59%. Voltou a subir
nos meses seguintes, puxado pelas altas nos preços dos alimentos, da energia e
dos combustíveis, atingindo 0,36% em julho, para recuar novamente até 0,23% nos
30 dias encerrados na segunda semana de agosto. A inflação acumulada em 12
meses, que bateu em 4,21% até a quinzena inicial de fevereiro, recua desde
então, atingindo 2,28% ao final da segunda semana de agosto. Para comparar, a
meta definida pelo BC para a inflação de todo este ano está na casa de 4,0%
(com tolerância de 2,5% a 5,5% nos limites inferior e superior da meta
central). A inflação encontra-se, portanto, até abaixo daquele limite inferior(2,5%)
e, sendo assim, parece haver espaço suficiente para elevar as emissões de
moeda, já que a equipe econômica escolheu, desde o final dos anos 1990, uma
política de metas para a inflação e esta, presumivelmente, deve ser obedecida –
ou então substituída por algo diferente que não uma política de metas para a
inflação. Soa evidente e redundante, mas parece haver uma incapacidade
generalizada para captar a obviedade nos dias que correm.

Balanço

·  
Para
algumas correntes do pensamento econômico brasileiro, o avanço persistente das
emissões de moeda, mesmo em um momento de crise humanitária e diante da
necessidade de prover meios de sobrevivência (literalmente) a milhões de
famílias, deveria ser considerada uma ameaça gravíssima à estabilidade dos
preços diante do histórico inflacionário do País. Em síntese, esses
“pensadores” olham para o retrovisor para projetar o futuro, num mundo sacudido
pela pior crise sanitária desde o começo do século passado, como se a economia
e as relações econômicas fossem retomar ao que antes se considerava como
“normal”.

·  
Parece
óbvio que uma política econômica negligente tenderia de fato a causar
desequilíbrios em toda a economia. Mas não é nem disso que se trata. Repetindo:
um período de grave emergência exige políticas igualmente emergenciais e
transitórias, até que a crise possa ser debelada. Todas as economias ao redor
do mundo sairão da crise com déficits gigantescos e altamente endividadas. O
Brasil, neste caso, não será exceção.

·  
Adicionalmente,
o País caminha para o quarto ano consecutivo com a inflação senão abaixo, muito
próxima do centro da meta. E pode ter o quinto ano seguido de taxas inflacionárias inferiores à meta, a se considerar a aposta dos
mercados capturada pelo relatório Focus, que antecipa uma inflação em torno de
3,0% para 2021 frente à meta de de 3,75% fixada para o próximo ano. Isso
deveria dizer alguma coisa aos formuladores da política econômica.

·  
Apesar
do forte crescimento a partir de março deste ano, a base monetária no Brasil
mantém-se num nível internacionalmente reduzido. Nos Estados Unidos, em julho
deste ano, o saldo das emissões de moeda havia alcançado qualquer coisa ao
redor de US$ 4,70 trilhões, quase três vezes o tamanho de toda a economia
brasileira e algo em torno de 24,0% do PIB daquele país. Proporcionalmente ao
Brasil, pode-se considerar que os EUA emitem quatro vezes mais moeda. Sim,
trata-se de uma economia desenvolvida e estabilizada. Mas os grandes números
servem para conferir aos dados brasileiros alguma referência e demonstrar que
não estão fora de proporção.

·  
Numa
anotação final, o aumento de 37,75% na base monetária brasileira entre março e
julho deste ano correspondeu a um acréscimo de R$ 116,114 bilhões no volume de
dinheiro em circulação. O rombo do Tesouro exigiu emissões de R$ 487,708
bilhões, parcialmente compensadas pela venda de títulos federais (o que enxugou
R$ 327,014 bilhões do mercado). As operações no setor externo (compra e venda
de dólares) permitiram ainda a retirada adicional de R$ 13,608 bilhões.

·  
Mas
o socorro do BC aos bancos com problemas de liquidez (ou seja, com falta de
recursos para liquidar compromissos) levou à emissão de R$ 35,799 bilhões, o
que contribuiu com 30,8% para o aumento da base monetária. Claramente, não
foram apenas o auxílio emergencial e o aumento nos recursos para a saúde que
levaram ao crescimento das emissões de moeda.