Coluna

Sem estoques de arroz, feijão e milho, governo tornou-se refém do mercado

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 11 de setembro de 2020

Os
estoques reguladores de arroz, feijão e milho, literalmente, viraram pó ao
longo dos anos 1990, período que coincide com a predominância do pensamento
“liberalizante” na condução da política econômica;voltaram a crescer entre 2006
e 2012, quando vigorou outra orientação para a economia; entraram em queda nos
dois anos seguintes, já em meio à crise política, para novamente serem
vaporizados nos últimos dois anos. Não por coincidência ao longo dos meses de
desgoverno da atual gestão. O País não tem estoques públicos de feijão desde a
segunda metade de 2016 e as reservas de milho, que tem importância também na
alimentação dos rebanhos, desabaram para um de seus menores níveis históricos, despencando
para 236,7 mil toneladas neste ano ou 0,23% de uma safra estimada em 102,5
milhões de toneladas no ciclo 2019/20. No caso do arroz, os estoques não são
suficientes para um dia de consumo.

A
criação da política de estoques reguladores retrocede aos anos 1970, com o
propósito de dotar o governo de instrumentos para socorrer os produtores em
tempos de safras superabundantes, comprando a produção excedente de forma a amenizar
a queda nos preços e assegurar alguma renda ao campo. Em tempos de frustração
da produção agrícola, os estoques acumulados nos anos de bonança poderiam ser
desovados para, de alguma forma,regular o mercado, evitando volatilidade
excessiva e abusos nos preços, combatendo movimentos especulativos e defendendo
o consumidor.

Tratava-se,
portanto, de uma política de segurança alimentar com foco no abastecimento
doméstico e na preservação da produção no campo.
Atualmente, apenas os mercados importam e o governo tornou-se refém de jogadas,
manobras para aumentar abusivamente preços agrícolas, flutuações naturais da
oferta e das pressões articuladas pelas grandes tradings que ditam os preços no
mercado internacional. Para complicar, em nome do ultraliberalismo assumido do
seu ministro dos mercados, por enquanto no (des)comando da política econômica,
o governo concedeu ampla liberdade para exportadores, sem a menor visão
estratégica e de prazo mais longo. Em resumo, abandonou os consumidores a sua
própria sorte.

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Quase nada é
nada mesmo

Em
1988, segundo as séries estatísticas da Companhia Nacional de Abastecimento
(Conab), os estoques de arroz em poder do governo somavam perto de 4,484
milhões de toneladas, na média dos 12 meses daquele ano. O volume correspondia
então a 38,1% de toda a produção do grão, que alcançou 11,763 milhões de
toneladas na safra colhida naquele ano. Em 1999, as reservas públicas já haviam
caído a menos de um décimo do que eram 11 anos atrás, para apenas 414,75 mil
toneladas, correspondendo a 3,6% da produção. Os volumes voltariam a crescer
até atingirem perto de 1,440 milhão de toneladas em 2012, algo como 12,4% da
safra. Neste ano, a Conab registra em seus armazéns precisamente 21,592 mil toneladas,
entre aquisições realizadas pelo governo federal e arroz depositado pelos
produtores em operações com opção de venda ao setor público. Uma mixaria, que
se comprara a um consumo diário médio de 29,6 mil toneladas, na estimativa da
Conab, que espera um consumo doméstico total na faixa de 10,8 milhões de
toneladas no ano safra 2019/2020.

Balanço

·  
A
falta de política agrícola, mais precisamente, de uma política que busque
equilibrar os interesses de produtores e de consumidores, contribuiu ainda para
simplesmente “congelar” a produção de arroz, cultura antes utilizada largamente
para “amansar” o solo ainda indomado das novas fronteiras agrícolas no
Centro-Oeste do País.

·  
Por
mais incrível que possa parecer, o Brasil produzirá neste ano uma safra menor do
que aquela colhida em 1988. Para relembrar, a produção havia alcançado 11,763
milhões de toneladas naquele ano e, em 2020, chegou a 11,183 milhões de
toneladas, conforme a Conab, num recuo de quase 5,0%. A população brasileira
saltou quase 48% no período, passando de 143,6 milhões para 212,0 milhões de
pessoas na estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
para este ano.

·  
Mas
o desgoverno não ficou limitado à liquidação dos estoques agrícolas. Com altas
mais expressivas entre março e maio deste ano, o dólar mais caro ajudou a
tornar as exportações muito mais atrativas. As vendas externas, no acumulado
entre janeiro e agosto deste ano, já superam todo o arroz exportado nos 12
meses de 2019 (1,062 milhão de toneladas), somando 1,153 milhão, em alta de
73,5% frente aos primeiros oito meses do ano passado, quando haviam somado
664,855 mil toneladas.

·  
Mantida
a média mensal observada ao longo de 2020, as exportações tendem a superar o
recorde anotado em 2018, quando os embarques de arroz haviam se aproximado de
1,455 milhão de toneladas. Os preços médios da tonelada exportada subiram 4,6%
na média entre janeiro e agosto deste ano frente a igual intervalo de 2019,
variando de US$ 337,42 para US$ 353,05. Mas, considerando o dólar médio do
período, o salto em reais foi de quase 20,0%.

·  
Descaso
do governo, baixos estoques, exportações em alta e valorização das cotações lá
fora, diante da oferta global mais restrita, criaram terreno propício para
manobras altistas. De acordo com dados do Centro de Estudos Avançados em
Economia Aplicada (Cepea), da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”
(Esalq/USP), os preços médios do arroz em casca no Sul do País, em termos reais
(ou seja, já descontada a inflação), bateram recorde histórico em agosto,
subindo 22,07% em relação a julho e nada menos do que 62,66% frente a agosto de
2019, para R$ 78,94 a saca de 50 quilos.

·  
Com
a demanda doméstica debilitada, aquela alta trouxe impactos para os preços
cobrados do consumidor, mas limitados (a se considerar o tamanho do salto
operado no mercado atacadista, bem entendido). Conforme o IBGE, na média de
agosto, o arroz ficou 3,08% mais caro do que em julho e contribuiu por algo
próximo a 7,1% na formação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA) naquele mês – lembrando que o aumento da gasolina, isoladamente,
respondeu por praticamente dois terços do índice mensal.