Na estrada com o circo

Laheto leva suas crianças ao espetáculo ‘Amaluna’, do ‘Cirque Du Soleil’, em São Paulo (SP)

Postado em: 06-10-2017 às 06h00
Por: Sheyla Sousa
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Laheto leva suas crianças ao espetáculo ‘Amaluna’, do ‘Cirque Du Soleil’, em São Paulo (SP)

Bruna Policena*

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‘O picadeiro é grande, do tamanho do coração’. Este é o mote da canção na boca da criançada do Circo Laheto, de volta a Goiânia em um ônibus arranjado, com ingressos reservados e convite feito pelo grande Cirque Du Soleil.  Trata-se de um projeto social que recebe, com toda simplicidade e delicadeza, uma criançada disposta a aprender não só a arte circense, mas a desenvolver o verbo ‘cativar’. Amizade, companheirismo e, principalmente, alegria, nunca faltam em uma turma de circo. Na última terça-feira (3), o Laheto partiu para assistir à estreia do espetáculo Amaluna, na capital paulista, sob a orientação da arte-educadora Seluta Rodrigues. Por meio da Rede Circo Mundo e muitos ‘padrinhos’ de coração, que apoiam circos sociais, é que foi possível uma viagem tão especial para esses pequenos e seus educadores.

O Circo Laheto faz parte da Rede Circo Mundo, um Centro de Formação de Educadores Sociais que recebe apoio do Cirque du Soleil. Por meio dessa parceria, o Laheto teve oportunidade de apreciar Amaluna. Para muitas das crianças atendidas pelo projeto, esta foi a primeira viagem da vida. No total, 48 pessoas, entre arte-educadores e alunos, se organizaram como família: cada adulto adotou seu ‘afilhado’, uma forma de cuidado e fortalecimento de laços. A euforia, a alma de tanto artista não cabia naquele ônibus, e, claro, que não faltaram palhaços para animar a jornada. Entre cantorias e sonecas, puxões de orelha e piadas, a vida no circo foi se fazendo presente na alegria e nas barreiras enfrentadas.

Claro que estamos falando de artistas, arte-educadores, que são segunda e terceira gerações de famílias circenses, e têm muita experiência para contar. O olhar encantado e também crítico destes professores apresenta às crianças um espetáculo de nível internacional, e coloca a turma em posição não só de espectadores, mas de artistas que precisam olhar e buscar referências, e principalmente acreditar na profissão, na vida no circo, que aqui no Brasil sofre tanto preconceito e falta de apoio, estrutura. Mas ainda sim entender o valor da arte, do treino, da autoavaliação. Chegaram a São Paulo! O espetáculo começou, regado a pipoca e refrigerante, com um picadeiro tão grande quanto o coração do Laheto. A decoração, simples e encantadora, os equipamentos sonoros, luminosos, e toda estrutura física surpreendem. 

‘Amaluna’

Pela primeira vez, um espetáculo do Cirque Du Soleil homenageia o feminino, a renovação e o renascimento, a força e o equilíbrio, com uma banda, ao vivo, composta somente por musicistas, e quase todo o elenco apresentado por mulheres. 

Depois de guiar a cerimônia de chegada à vida adulta de sua filha Miranda, a rainha Próspera causa uma tempestade, e um grupo de rapazes chega à ilha, desencadeando uma história de amor épica entre a filha de Próspera e um bravo jovem pretendente. Porém o amor deles será testado. O título, Amaluna, é o nome da ilha composta só por mulheres, que, em sua tradução, representa a mãe Lua, trabalha justamente a força feminina e as fases da Lua.

No palco, rodeado por bambus iluminados, um tecido vermelho baila suavemente no ar, soprado por ventiladores, e logo impressiona o público. Um romance acrobático marca o início da vida adulta, da descoberta do amor da menina. A Lua, representada por uma esfera de cristal, está presente em vários números, e é uma peça-chave para resolver o clímax da história. Os artistas do Laheto, que já assistiram e acompanham o trabalho do Cirque Du Soleil, compartilham da ideia de que este não foi o espetáculo de maior  ‘dificuldade’ apresentado pelo circo, mas, com toda certeza, a beleza, a riqueza de detalhes e o rock pesado das mulheres da banda marcaram cada espectador que esperava ser tocado de alguma forma pelo enredo. 

Amaluna apresenta números como Romance Aéreo, no qual as artistas voam por sobre a plateia, em tecidos aéreos presos ao Carrossel, dispositivo cênico circular localizado muitos metros acima do palco. O Teeterboard, em que os jovens que chegam à ilha, se lançam para o alto utilizando uma gangorra, girando e rodopiando no ar, numa tentativa lúdica, em alta velocidade, de escapar – em primeiro lugar da gravidade; em seguida, da prisão em que se encontram. Também há as Barras Irregulares, quando os rapazes capturados ajudam as amazonas a apresentarem uma versão teatral rápida da clássica rotina de ginástica. E o Cerceau & Waterbowl, em que Miranda brinca na gigantesca taça de água e, gradualmente, toma consciência de seu corpo, e expressa sua sexualidade enquanto executa um exercício de equilíbrio com as mãos. 

O circo está ‘machucado’

Na estrada, passaram pelas janelas do ônibus alguns pequenos circos instalados em terrenos próximos às cidadezinhas, e a criançada logo gritava. Cadu disse que um desses circos estava ‘machucado’. A lona estava rasgada por conta talvez de uma rajada de vento. Cadu é um cara ligado na tomada, veio de  Taquaruçu do Porto, no Tocantins, para animar a viagem da garotada. Ele é um arte-educador e palhaço de um circo social da sua cidade. Então o circo estava ‘machucado’. 

O pai Roberto e seu filho Wladmir Romanicki estão no circo desde que entraram neste mundo. São anos de picadeiro, de viagens, e ‘perrengues’: estacas da armação cavadas pelos braços, lona levantada na força, montagem e desmontagem do circo. 

Os Romanickis são palhaços. Só pode-se entender a grandeza do trabalho de um palhaço quando se compreende que a alma é. Não é um personagem. É uma escola, um estilo de vida, um estudo e aprimoramento diário. O pai já rodou o Brasil com seu circo além dos anos em que trabalhou com o avô de Wladmir. Os palhaços, dessa vez, falam sério. No Brasil, consideram que até há um incentivo para o circo, mas, na Europa, há apoio. Apoio por parte do governo, que disponibiliza terrenos públicos, com água, energia e saneamento para a montagem segura e digna de um circo. 

Welton, outro viajante em destino à Amaluna, conta que nasceu no circo e aprendeu a fazer tudo, todos os números, não só artísticos, mas aprendeu a se virar na carpintaria, elétrica e tudo mais que precisava fazer para o circo acontecer. E, hoje, essas habilidades rendem alguns bicos que complementam sua renda.

A meninada, agitada na volta, não queria saber de dormir – entre paradas e almoços, todas cuidadas com muito carinho. Wallace Neris embalou as músicas no ônibus, na batida de Mayque Nogueira, mexendo com o suingue de todo mundo. O arte-educador já foi aluno do Laheto, e agora é professor e um pouco pai da criançada, sempre de olho na bagunça. É uma família, e, como todo machucado, se cuidado, cicatriza e sara. O circo tem estado machucado por muitos anos, mas ainda há quem acredite, quem apoie e incentive a mais pura forma de diversão, que atrai gente de toda idade e perpetua habilidades, técnicas milenares. Os circos sociais ultrapassam a lona, se tornam um picadeiro gigante quando apresentam a arte para crianças quem muitas vezesm não têm oportunidade nem condições. O incentivo tem que virar apoio, pois o circo é escola. 

Laheto

O Circo Laheto é uma Organização da Sociedade Civil (OSC) que, há 24 anos, trabalha com meninos e meninas de bairros vizinhos e escolas públicas de Goiânia. São mais de 6 mil pequenos e cerca de 4.500 famílias atendidas por meio do projeto Arte, Circo e Cidadania. Atualmente, 180 crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos fazem aula no Laheto gratuitamente. Os alunos participam de aulas de arte circense (como pernas de pau, malabares, monociclo, diabolô, palhaçaria, tecido acrobático, trapézio e lira), atividades de incentivo à leitura, produção de textos, educação musical, teatro e oficinas de matemática, nutrição e pedagogia, ministradas por professores e estagiários da Universidade Federal de Goiás. E ainda fazem as tarefas escolares com o auxílio dos coordenadores do programa Mais Educação, parceria escolas/circos, e dos arte-educadores. No Laheto, crianças e adolescentes aprendem a importância do trabalho em grupo e noções de cidadania. É o que ressalta Maneco Maracá, diretor: “Os equipamentos por si são extremamente desafiadores, além de ser uma arte que trabalha muito o coletivo, o que contrapõe as relações de individualidade da sociedade”.

Os meninos e meninas são atendidos pelo projeto no contraturno da escola. As aulas são de segunda a quinta-feira, no Circo, e na sexta-feira nas escolas parceiras. E são feitas da seguinte forma: crianças e arte-educadores se reúnem em assembleia para discutir assuntos referentes ao dia a dia, dar opiniões, críticas, achar soluções. Depois, os alunos são divididos em turmas, e cada uma delas faz uma aula específica – como equilíbrio de pratos, rola-rola, pernas de pau e diabolô – além de aulas de educação musical (percussão), leitura, interpretação de texto e operações básicas da matemática utilizando os equipamentos circenses.  Cada aula dura 40 minutos, e, depois, os grupos mudam de instrutor e de turma. 

*Integrante do programa de estágio do jornal O HOJE sob orientação da editora Flávia Popov. Bruna viajou a São Paulo (SP) a convite do Circo Laheto. 

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