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segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Essência

Beyoncé é destruidora mesmo

Com o lançamento do clipe ‘Formation’, a artista negra mais importante do mundo não se contenta só em cantar, dançar e atuar: Beyoncé quer também provocar

Postado em 12 de fevereiro de 2016 por Redação
Beyoncé é destruidora mesmo
Com o lançamento do clipe ‘Formation’

JÚNIOR BUENO

Quem acompanha o noticiário da música pop sabe que o lançamento de um clipe de Beyoncé é capaz de movimentar o mercado fonográfico, a internet e a mídia de celebridades em um curto espaço de tem­po. Some-se a isso o fato que a cantora tem a mania de manter segredo sobre as novidades até o último segundo. Em dezembro de 2013, o mundo acordou com o lançamento de um álbum inteiro acompanhado de um videocli­pe para cada música. No último sábado, ela fez de novo.

Já se sabia que Beyoncé faria uma participação no show do Coldplay no intervalo do Superbowl, o programa de TV mais visto dos Estados Unidos. E o planeta contava que ela faria com Chris Martin, vocalista do Coldplay, um dueto em Hymn for the Weekend, participação dela no último álbum da banda. Mas no sábado, véspera do Super Bowl, ela lançou do nada um clipe com ares de superprodução de um single inédito, Formation. E não são só as imagens que estão repercutindo e causando comoção. A letra já se tornou um hino da luta contra o racismo.

Beyoncé dirigiu sozinha o seu novo vídeo em que faz referências históricas da luta da comunidade negra e honra suas origens. A cantora aborda fatos históricos e sociais, co­mo um sample da voz de Messy Mya, um negro morto vítima de racismo, faz referência ao episódio do taxista negro que foi torturado por policiais brancos em Los Angeles, em 1991, que teve tudo registrado por um cine­gra­fista amador.

A letra é fundamentalmente sobre o orgulho negro. Exalta mulheres, a origem do negro americano, os Estados do sul do país– incluindo o Texas natal de Beyoncé –, cita estereótipos sobre negros de forma orgulhosa, co­mo o de ir ao restaurante Red Lobster, ou de andar com molho de pimenta na bolsa, e, sobretudo, fala sobre a capacidade de todo negro nos EUA de assumir o poder: “Eu vejo algo, eu quero (…) eu sonho, eu trabalho, eu me esforço até tê-lo”.

Cabelo pixaim, sim! 

Além disso há a resposta bem humorada a rumores envolvendo seu nome. Sobre a teoria da conspiração que afirma que a cantora e seu marido, o rapper Jay-Z seriam da ordem secreta Iluminatti, ela brada na música: “vocês, haters, estão passando vergonha com essa história de Iluminatti”. À cidadã novaiorquina que teve a pachorra de fazer uma petição online exigindo que Beyoncé penteasse o cabelo da filha Blue Ivy, de 4 anos, ela é mais direta: “eu gosto do meu bebê com seu cabelo afro de bebê”. Blue também participa do clipe, exibindo sorridente seu cabelo black power. E às críticas sobre sua estética “embranqueci­da”, a cantora emenda: “Eu gosto do meu na­riz com as narinas do Jackson 5”.

Beyoncé aparece, ainda com roupa de épo­ca, de luto em uma espécie de velório em frente a uma casa, em seguida em uma sala de estar com um grupo de mulheres negras vestidas como madames brancas. A cena pula pa­ra um estacionamento em que Beyoncé e suas dançarinas exibem a coreografia do refrão, ao som de: “Eu destruo (gíria traduzida de slay, mas que também poderia significar “eu ma­to”). Okay, meninas, agora vamos entrar em formação. Eu destruo”.

A abelha rainha aparece então novamente de luto mostrando o dedo do meio e dizendo que “quando ele transa bem comigo, eu levo ele para o Red Lobster”,  ou então deixa ele dar uma volta no seu helicóptero, ou ainda permite que a música dele toque no rádio. E encerra dizendo que você e ela “podem ser um Bill Gates negro em formação”. Entre uma cena de missa batista frequentada por muitos negros e outra que mostra um jornal estampando o ativista negro Martin Luther King na capa, começam a aparecer cenas atuais de um garoto vestido de preto e usando um gorro e dançando em frente a um paredão de policiais que então levantam as mãos para o alto e “se rendem”. 

O vídeo foi gravado em Nova Orleans, no sul dos EUA. A região foi a última a abolir a escravidão, e é conhecida por vários conflitos raciais. O clipe faz referência ao período colonial, quando muitos negros foram escravizados e humilhados. Os figurinos, os cenários, os dançarinos, tudo faz referência a esse período. Em certo momento, uma pichação no muro diz: “Pare de atirar em nós”. 

A frase é claramente um desabafo sobre os jovens negros mortos por policiais nos últimos anos. A polícia também não escapa das críticas: em todo o vídeo, Beyoncé está em ci­ma de uma viatura no meio de um rio, uma alusão ao Furacão Katrina, que devastou o estado da Louisiana, onde fica Nova Orleans, em 2005. No fim do vídeo ambos afundam, Beyoncé e uma mulher negra levada pela viatura.

Ofuscando Coldplay

E então temos a participação da cantora no evento mais assistido da América. E tome polêmicas. Beyoncé aparece no gramado do estádio da final do Super Bowl vestida com uma jaqueta inspirada em uma famosa roupa de Michael Jackson, logo após uma banda militar abrir alas para ela entrar. Suas dançarinas estão todas vestidas de preto com boinas também pretas, em referência aos Panteras Negras, organização política ativa nos anos 1960 e 70, famosa por sua atuação armada defendendo guetos negros da violência da polícia, considerada racista. Foi o bastante para Beyoncé ofuscar Coldplay e Bruno Mars, ou­tro convidado da banda anfitriã.

A união de letra, clipe e apresentação revoltou os defensores da polícia e quem, em geral, não vê no racismo o fato que motiva as mortes de negros pobres nos Estados Unidos. Faz parte dessa linha de pensamento o grupo partidário da campanha All Lives Matter (todas as vidas importam), uma resposta à cam­panha Black Lives Matter (a vida dos negros importa), criada na internet em 2013 por ativistas negros após a morte do jovem Travyon Martin, baleado por um vigilante na Flórida.

Boicote

Após o show, posts no Facebook e no Twitter passaram a pedir o boicote à artista, ao campeonato de futebol americano e sobrou até para a Pepsi, empresa patrocinadora dos shows no Super Bowl. Do outro lado, Formation parece ter sido bem recebida pelos fãs. Poucos minutos depois da apresentação, foi anunciada a turnê The Formation World Tour, com a qual Beyoncé deve viajar pela América do Norte e Europa a partir do dia 27 de abril. Interessados se apressaram em acessar o site de vendas de ingressos que, devido ao volume excessivo de visitantes, chegou a ficar fora do ar.

Com uma carreira de sucesso desde a girlband Destiny Child, no fim dos anos 90, Beyoncé é, neste século, a artista negra mais importante do mundo, com marcas e êxitos ainda não igualados. Seu sucesso abriu as portas da indústria para outras cantoras como Rihanna e Nick Minaj. Sua voz inconfundível embalou, ao longo de uma década, baladas açu­caradas e músicas “bate-cabelo”. Seu império também passou pelo cinema, em elogiadas participações em Dream Girls – Em Busca de Um Sonho e Austin Powers, entre outros filmes. 

Nos últimos anos, Beyoncé apresentou uma interessante guinada nas letras de suas músicas, com um teor feminista em canções poderosas como Flawless e Pretty Hurts. Mas em se tratando de se posicionar politicamen­te sobre a atual questão racial nos EUA – e no mundo –, Formation é o ponto alto da carreira da cantora. Desde Nina Simone não se via uma cantora negra fazer algo tão grandioso contra o racismo naquele País. E isso mostra o poder na música pop como instrumento de modificação social. Como diria aquele meme,  Beyoncé, “a senhora é destruidora mesmo, hein?” 

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