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sábado, 23 de novembro de 2024
Cultura

Faça você mesmo

Graças a novos produtores empolgados e membros de bandas que não tinham onde tocar, Goiânia ganhou seu circuito underground

Postado em 1 de abril de 2016 por Sheyla Sousa
Faça você mesmo
Graças a novos produtores empolgados e membros de bandas que não tinham onde tocar

José Abrão

Logo, lojas e praças como o Vaca Brava e a Praça Universitária não eram mais o bastante e foram surgindo os primeiros produtores e primeiros espaços dedicados à música. Até hoje, o principal palco de música alternativa em Goiânia continua o mesmo: o Martim Cererê. Localizado no Setor Sul, ele foi feito de três grandes caixas d’água que foram reformuladas  e transformadas em teatros. O principal responsável por isso é o produtor Carlos Brandão, um dos idealizadores do local, convida­do pelo governador Henrique Santillo para revitalizar as caixas d’água do Setor Sul. “Achei ruim na época, eu que­ro trabalhar com cultura, não com caixa d’água! A gente fez um mapeamento de todo o espaço e criamos o projeto Novas Águas e previa o que tem lá hoje, três teatros e previmos dez pequenas lojas para vender produtos de artes locais, como discos, camisetas, artesanato, etc etc”. 

Brandão saiu do Estado em 1991, mas retornou para o Martim em 1999 e é considerado um dos responsáveis pelo boom de bandas goianas que surgiram sob sua tutela, no espaço cultural, entre 2001 e 2006. “Voltei para o Martim em 99, quando o Nasr Chaul assumiu a Secretaria de Cultura e me convidou. Eu disse que não queria, que estava muito velho, mas ele rebateu que o Martim estava muito acabado e só um doido como eu poderia dar jeito naquele espaço”. Logo Brandão arregaçou as mangas. “Tivemos muitos problemas, mas nada de grave. Comecei a movimentar o Mar­tim com música eletrônica e outras coisas e chamei a Monstro para ocupar o espa­ço com os festivais, o Noise e o Bananada. A ida da Monstro para o Martim fez a coisa mo­vimentar muito. A cada dia tinha duas, três bandas novas para tocar. E eram novos produtores que já estavam no mercado e precisavam de espaço onde fizeram dezenas de shows e festivais. As coisas foram acontecendo. O Martim ficou conhecido no Brasil todo. Alguns sites do rock listavam as me­lhores casas de espetáculo e o Martim sempre entrava nessas listas. Todo mundo passou por lá: Ratos de Porão, Los Hermanos, Mallu Magalhães. Tudo que tinha de rock’n’roll e era bom passou por lá”.

Mas nem tudo foram flores: “Toda a vizinhança do Martim apoiou e gostou do trabalho. Mas tinha um juiz aposentado lá que começou uma briga que durou todo o tempo em que eu estava lá. Ele não dobrou e eu não dobrei. Ele reclamava muito do barulho. Até hoje ela mora ali perto e deve reclamar, mas eu não respeitava as queixas dele. As coisas que eram feitas no Martim eram elogiadas no Brasil inteiro, então eu não ia respeitar mesmo. Esse mesmo juiz falou que eu estava usando o rock’n’roll para promover a homossexualidade e vender drogas no Martim, mas não deu em nada”. 

Brandãoi se lembra de um caso que talvez possa definir bem o seu amor pelo local: “Levei um tiro quando fui reabrir o Martim porque tinha uma gangue ali per­to que queria me pegar, mas tudo isso passou e o Martim foi o melhor espaço cultural que a cidade já teve. Até hoje acredito que o Martim é o melhor espaço para a cultura jovem. Os teatros do Martim não servem pra teatro porque eles não têm queda de platéia. Você senta na terceira fila e já não enxerga o palco. Aquilo parece que foi feito caprichosamente para a cultura jovem e é uma burrice as pessoas não aceitarem isso. O goiano parece que não gosta do jovem. Falaram que eu fiz uma revolução de um bando de camiseta preta, o que é uma bobagem. Goiânia tem uma cultura jovem maravilhosa, muito além do sertanejo que a gente vê por aí que as autoridades da cultura e os grandes empresários não enxergam e fingem não enxergar”.

Vanguarda cultural

Outro nome da produção cultural em Goiânia é Márcio Júnior. Fundador da Mechanics e da Monstro Discos, Márcio fez parte da primeira geração de produtores que começou a realizar shows, porque a banda dele e as de amigos não tinham onde tocar. Ele fez parte daquela geração fascinada pelo Kiss e profundamente afetada pelo Rock in Rio, em 1985. “No final dos anos 1980 comecei a ir nos shows e ao Martim. Havia uma cena de heavy metal muito forte. Aí vieram os anos 1990 e meio que surgiu tudo ao mesmo tempo: a banda, a Monstro e o Noise”. Ele e o sócio, Léo Razuk (vulgo Léo Bigode), tinham parceria na loja Sonic junto com o produtor Oscar Fortunato: “Naquela época, já gra­vávamos fitas. A loja quebrou, mas nós queríamos  con­t­i­­nuar. Aí fundamos a gra­vadora e fizemos o primeiro Noise, em 1995. Fomos muito influenciados por aquilo do punk de ‘faça você mesmo’. Não tinha gravadora, então fizemos nossa gravadora. Não tinha onde tocar, então fizemos o nosso próprio festival”.

Assim como Brandão, ele critica a forma de pensar a cultura dos agentes públicos e fala que se eles não tivessem se virado, o rock goiano tinha morrido na praia. “Existe uma coisa no poder público em que os espaços culturais ficam à mercê de seus gestores. Não existe uma política pública de cultura. Se você coloca um cara conservador para cuidar de um espaço, ele morre muito rápido e sempre teve – tem até hoje  – o preconceito contra o rock. Durante um período, era impossível fazer show no Martim”. Esse foi um dos motivos que levaram várias bandas de rock e punk para os DCEs da UFG e da PUC. “Eles foram muito importantes quando o Martim estava fechado. Fizemos dois Noise lá. Mas depois, passamos a ter problemas, supostamente por causa de barulho. A verdade é que o preconceito nunca arrefeceu”, relata.

Márcio relembra o convite e a parceria com Brandão. “Ele nos convidou e começamos a retomar o Martim como vanguarda cultural. Ele era um facilitador. Tivemos uma média de 100 shows por ano, um público de 50 mil pessoas”. Ele acredita que, ao longo dos anos, o legado da Monstro foi ajudar a organizar e profissionalizar a cena. De vários caras apaixonados tentando se virar, as bandas goianas passaram a fazer um trabalho sério e duro. “A Monstro talvez seja importante por organizar essa cena de rock e melhorá-la, de forma que tudo o que acontece hoje carrega um legado da Monstro”.

A cena agitada do Martim deu à luz vários produtores e selos goianos, como a Fósforo Cultural. O jornalista João Lucas acabou deixando a comunicação de lado para se dedicar integralmente à profissão de produtor cultural. “Estudei Jornalismo, Rádio e TV, produção era mais um hobby”, conta ele, que começou a fazer seus primeiros shows no Martim em 2002. Em 2006, ele acabou por lançar a Fósforo: “Acho que o Brandão abriu espaço ao desburocratizar o processo para que jovens pudessem fazer shows e festivais. O Brandão ensinava, e esse pensamento dele de democaratizar a cultura, de ajudar quem ta começando, de dar abertura para novos produtores, passou para os demais. É cíclico. Se você não fizer isso, a cena fica estagnada”, disse. 

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