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terça-feira, 26 de novembro de 2024
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linguística

Tem base um trem desse?

Enquanto o preconceito linguístico é debatido nas redes sociais,
o jeito de falar
do povo goiano é objeto de estudos na Faculdade de Letras da UFG

Postado em 10 de agosto de 2016 por Renato
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Júnior Bueno

Circulou pelas redes sociais e causou revolta o caso do médico que caçoou de um paciente que não sabia direito o que o enteado sentia e dizia que era “peleumonia”. Guilherme Capel, doutor em letras e receitas, sabedor de nomes difíceis, não aceitava que um mecânico semianalfabeto pudesse pronunciar, de maneira errada, um nome comum de doença, a pneumonia. Pois bem. Houve revolta pela atitude do médico, e este acabou sendo demitido do hospital em que trabalhava. Imagine esse médico, atendendo um contador de causos do interior goiano, como o saudoso Geraldinho Nogueira? “Uai, sô. Eu tenho tido é um marelume, uma tiriça, acho até que é coisa do demo, espinhela caída. Eu tô trabalhando e, quando é fé, vem esse tonteamento”. 
Outra médica, Júlia Rocha publicou em sua página no Facebook que “existe peleumonia sim”. “Eu mesma já vi várias. Incrusive com febre interna que o termômetro num mostra. Disintiria, quebranto, mal olhado, impíngi, cobreiro, vento virado, ispinhela caída. Eu tô aqui pra mode atestá. Quem sabe o que tem é quem sente. E eu quero ouvir ocê desse jeitinho. Mode a gente se entendê. Porque pra mim foi dada a chance de conhecê as letra e os livro. Pra você, só deram chance de dizê. Pode dizê. Eu quero ouvir”, escreveu Júlia. 
Pela postagem de Guilherme, é possível ver que ainda persiste o preconceito linguístico, que coloca em ordem de valores quem fala errado abaixo de quem tem acesso à norma culta da Língua Portuguesa. Pela resposta de Júlia, é possível perceber que esse preconceito é feio, pois classificar as pessoas pelo seu modo de fala é uma atitude elitista e não leva em consideração que nem todos tiveram as mesmas oportunidades de conhecimento.
E é totalmente errado pensar que a linguagem do povo, que difere das normas padronizadoras da gramática e da ortografia, não possui uma base cultural sofisticada. O falar do povo goiano, por exemplo, é objeto de estudo de um projeto desenvolvido na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG). A pesquisa Português Contemporâneo Falado em Goiás revela as diferentes variações usadas para se comunicar, além de alguns termos que reforçam a identidade de quem nasce no Estado, que vão dos tradicionais “uai”, “trem” e “aném” às expressões apaixonantes “quando é fé” e “tem base?”. 
Os estudos começaram em 2003, mas foram oficializados em 2009. O Grupo de Estudos Funcionalistas entrevistou 36 pessoas, de diferentes idades, que nasceram em Goiânia ou na Cidade de Goiás, antiga capital do Estado. Destas, 12 foram selecionadas e tiveram a fala acompanhada com análise mais aprofundada. Segundo a professora Vânia Cristina Casseb Galvão, presidente do Grupo de Estudos da Linguagem do Centro-Oeste (Gelco) e coordenadora da pesquisa, trata-se de um estudo de fundamentação teórica funcionalista, ou seja, que trata da linguagem em uso.
A pesquisa Fala Goiana surgiu dentro de um estudo da Língua Portuguesa. “A fala goiana é exemplar de uma linguagem própria, porque se afasta do Português europeu e marca-se como uma variante do português brasileiro”, explica Vânia. Segundo ela, é possível perceber o que torna uma fala diferente por dois mecanismos. O primeiro é o contorno entonacional, mais conhecido como sotaque. As falas, submetidas a programas de computador, podem ser avaliadas por suas curvas melódicas, pela entonação, e é possível distinguir a que região ela pertence. 
A segunda, mais fácil de aferir, é o léxico, que é um traço de natureza cultural. É a fala propriamente dita. “Nós estudamos o léxico em dois momentos. Na primeira etapa, nós estudamos a fala pela gramática dura. As escolhas verbais, os sujeitos, os objetos, a ordem dos elementos nas sentenças. A segunda etapa, a que nós nos dedicamos agora, é o que esta gramática traz em termos de produção de sentido”, diz a pesquisadora. 
Alguns elementos são marcantes na fala goiana, mesmo que seja presente ou tenha origem em outros lugares. O “uai”, por exemplo, é característico tanto em Goiás tanto quanto em Minas Gerais. “Os mineiros podem dizer que inventaram o ‘uai’, mas eu sou paraense, casada com goiano, e aprendi a falar ‘uai’ também”, diz Vânia. Para ela, as barreiras geográficas, tanto quanto as linguísticas, são fluídas, então não há algo que seja ‘exclusivo’ de uma região. Mas ela diz que sente um carinho especial pela expressão “quando é fé”, ou “quandé fé”. “É a marca da goianidade, é um meio sofisticado de introduzir o clímax da narrativa. Como operador discursivo é de uma beleza única”, diz Vânia, que confessa: “Eu sou suspeita para falar do ‘quando é fé’, porque eu sou fã de carteirinha.”
A pesquisadora explica que, quando se fala em ‘fala’, por mais que alguns se apeguem à gramática como um padronizador, não existem os termos ‘certo’ e ‘errado’. “Nós não falamos em termos de correção, mas de adequação. E a adequação é tudo que a articulação de interação permitir”, diz. “Goiás é um Estado de tradição rural que possui, na fala, muitos arcaísmos que não são reconhecidos pelos jovens. Os moradores dessa região nem sempre têm acesso a esse padrão. Ao mesmo tempo, certas falas são um jeito de proteção desses arcaísmos. Existem pessoas que ainda falam ‘bassoura’. Em um momento da história da língua, o ‘b’ era articulado como ‘v’, e isso ainda existe, de alguma forma”, completa.  
Vânia diz que a língua, como um organismo cultural vivo, é, assim como o solo, cheio de camadas. “A língua muda em camadas, as camadas geológicas do solo mostram nossa história. Na língua, também existem grupos e indivíduos que ainda carregam traços que vieram de outra época”. A pesquisa Fala Goiana, por enquanto, ainda está circunscrita ao plano acadêmico, em publicações, teses e estudos. Mas, para o ano que vem, é possível que seja lançado um livro com o resultado da pesquisa. 
Vânia não acha que há valor em se apegar demais às regras gramaticais no contexto da fala diária. “A escrita é institucional, não é a língua; é uma modalidade de língua, uma padronização para o bom andamento da sociedade. A língua é a fala”, diz. Na obra Preconceito Linguístico, o linguista Marcos Bagno concorda: “Uma receita de bolo não é um bolo, o molde de um vestido não é um vestido, um mapa-múndi não é o mundo. Também a gramática não é a língua”. 
“Onde está a relevância científica em dizer que alguém falou errado?”, questiona Vânia. Para ela, se comunicar com sucesso vai além de obedecer padrões. Os causos de Geraldinho Nogueira, tão goianos quanto a poesia de Cora Coralina ou a prosa de Bernardo Elis, são a prova de que a fala goiana é um trem bom demais da conta!  Tem base?
 

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