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segunda-feira, 25 de novembro de 2024
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Homenagem

A vida de Ferreira Gullar como obra em construção

Ferreira Gullar, que perpassou gerações e movimentos entre atos geniais e opiniões infames, sai de cena como um dos maiores poetas brasileiros

Postado em 6 de dezembro de 2016 por Renato
A vida de Ferreira Gullar como obra em construção
Ferreira Gullar

Júnior Bueno

Um
dos últimos grandes nomes da poesia brasileira, Ferreira Gullar saiu de cena no
domingo (04). Poeta, crítico de arte, dramaturgo, biógrafo, escritor de
memórias e tradutor, ele morreu este domingo no Rio de Janeiro, aos 86 anos, de
pneumonia. Sua vida e obra foi permeada de momentos de grande inspiração e
outros, recheados de opiniões controversas. O autor de Poema Sujo, nas palavras
do jornalista e professor Rogério Borges, não pode ser lido de forma
unidimensional: “O poeta que nos deixa agora só pode, realmente, ser
compreendido em partes. Todas elas formam um todo, plural, múltiplo, cheio de
nuances, que abraçou causas e se arrependeu, abandonando-as.”, escreveu Rogério
em artigo no site literário Ermira.  

Ferreira
Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira, foi um dos nomes mais
representativos da moderna literatura brasileira. Sua extensa e diversificada
produção literária e teórica o coloca como um dos mais importantes poetas e
críticos de arte brasileiros da atualidade. Nasceu no dia 10 de setembro de
1930 e foi no ano de 1940, em São Luís, Maranhão – sua terra natal – que teve
início sua carreira poética, cujo sucesso o conduziria a uma das cadeiras da
Academia Brasileira de Letras em 2014.

O
primeiro livro de poesias, Um Pouco Acima do Chão, foi publicado em 1949 quando
o poeta tinha apenas dezenove anos. Nessa fase, Gullar, em período de formação,
mostrou-se influenciado pelas estéticas simbolistas e parnasianas.
Posteriormente, no início da década de 1950, escreveu os poemas de A Luta Corporal,
livro no qual é possível notar certa semelhança com a poesia dos poetas
paulistas que, em 1956, lançaram o Concretismo.

Explorando
propriedades gráficas e vocais das palavras, rompendo com a ortografia e com as
convenções da lírica tradicional, Ferreira Gullar integrou de maneira
circunstancial o movimento concretista, do qual se afastou por causa de
discordâncias em relação às suas propostas teóricas. Abandonou as experiências
de vanguarda e engajou-se na política por meio do Centro Popular de Cultura
(CPC), grupo de intelectuais de esquerda criado em 1961, no Rio de Janeiro,
cujo objetivo era defender o caráter coletivo e didático da obra de arte, bem
como o engajamento político do artista.

Nessa
mesma década, 1960, a poesia de Ferreira Gullar já mostrou um estado de alta
tensão psíquica e ideológica: seus textos, independentemente dos temas
abordados, são participantes, isto é, engajados, evidenciando a preocupação do
poeta com as mazelas sociais e, sobretudo, a preocupação em contribuir para a
transformação da sociedade brasileira. Por sua intensa participação política,
foi perseguido pela Ditadura Militar e, no exílio em Buenos Aires, escreveu
Poema sujo, considerado uma obra-prima da literatura brasileira. Gravado em uma
fita cassete, o poema foi trazido para o Brasil pelo amigo, o também poeta Vinícius
de Moraes, e no ano de 1976 foi, finalmente, publicado.

Obrigado
a se refugiar no exílio, Ferreira Gullar denunciou no exterior as atrocidades
que o então governo brasileiro infringia aos seus opositores. Passou por
Moscou, Santiago e Lima, cidades onde tornou-se espécie de centro gravitacional
para quem, como ele, precisou fugir do País para não cair nos porões da
ditadura. Ironicamente, seu nome ganhou ainda mais projeção por aqui no momento
em que mais tentavam mantê-lo à distância. É dessa época aquela que é
considerada sua obra-prima, Poema Sujo,
escrito após uma luta com a criação que durou meses, passou por muitos
endereços e que foi suscitado definitivamente depois de notícias perturbadoras
vindas do Brasil e nostalgia tensa.

De
volta ao Brasil, o poeta voltou com tudo, lançando obras como Na Vertigem do Dia,
Barulhos, Cidades Inventadas, assim como diversas antologias. Ele, que havia
começado no jornalismo como revisor da revista O Cruzeiro e integrou o corpo
editorial de O Pasquim, retornou à imprensa como articulista de grandes jornais
brasileiros. Foi uma voz ativa no processo de redemocratização, estava na linha
de frente do movimento das Diretas Já, defendia ideais de esquerda. Mas, como
em outras áreas, também mudou nesse campo. Aos poucos, deslocou-se mais para o
centro e transformou-se em um crítico contumaz de partidos a que antes se
aliara.

E
é aí que reside uma das facetas “não bonitas” de Ferreira Gullar: crítico dos
movimentos sociais, passou a criticar a luta antirracismo e afirmar, entre
outras coisas que era o movimento negro que insistia em criar um movimento de
ódio entre negros e brancos. Em outro artigo na Folha de São Paulo, afirmou que
a existência de uma literatura negra é uma ideia tola, dando a ideia de que a
intelectualidade é branca, sobrando aos negros a primazia de fazer samba e
Carnaval.

No
teatro e na música, Gullar também deixou suas marcas. Sua versão para a peça
Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, com Antônio Fagundes interpretando o
protagonista, levou o Prêmio Molière de Melhor Texto, algo ainda inédito em se
tratando de uma tradução. Até mesmo uma recriação de obra clássica tinha traços
de genialidade. Na MPB, é autor da letra de um clássico de Heitor Villa-Lobos,
a belíssima O Trenzinho do Caipira. Também compôs em parceria com Caetano
Veloso o bolero Onde Andarás, com Milton Nascimento a canção Bela Bela, com
Paulinho da Viola o samba Solução de Vida. Ainda compôs com Sueli Costa a
música Escuta Moça e com Adriana Calcanhoto, Definição de Moça. E é dele uma das
músicas mais cantadas nos karaokês Brasil afora, Borbulhas de Amor, versão de
uma música dominicana e sucesso absoluto na voz de Fagner.

Um
lado mais dramático da vida do poeta foi aberto por ele mesmo quando se
envolveu no debate das leis antimanicomiais no Brasil. Gullar teve dois filhos
com esquizofrenia. O que tinha o quadro mais grave recebeu tratamento em uma
clínica especializada e o que apresentava sintomas mais leves acabou morrendo
em 1992 de cirrose hepática. Gullar colocou o dedo na ferida ao falar de seu
drama e de sua aflição com a cobrança de que as famílias deveriam cuidar de
seus doentes. Em artigos na Folha, ele denunciava a falta de vagas para
tratamento psiquiátrico e revelava o quanto era complicado lidar com essa
situação.

Ferreira
Gullar não media palavras para expressar o que pensava. Não corria de
polêmicas, não fugia das brigas, não se escondia em opiniões inodoras.
Gostassem ou não do que tinha a dizer, ele dizia assim mesmo. Por outro lado,
também não se consternava em admitir equívocos, erros, arrependimentos. Com seu
jeito um tanto ansioso, não raro atropelando palavras, ele sai de cena no
momento em que era considerado o último dos grandes poetas brasileiros. 

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