Britânicos investigam deportação de menores carentes no século 20
Investigações apontam falhas de várias instituições britânicas na proteção dos menores de idade
O Reino Unido abriu, esta semana, inquérito para investigar
um programa oficial do governo que, durante décadas, enviou milhares de
crianças britânicas para outros países, sem detectar abusos que elas sofriam ao
chegar. O caso faz parte de uma ampla investigação independente, que tenta
examinar as falhas de várias instituições britânicas na proteção dos menores de
idade.
Entra as décadas de 1940 e 1970, o governo britânico e
algumas instituições de caridade recolheram cerca de 150 mil crianças órfãs ou
filhas de mãe solteiras, com idades entre 3 e 14 anos, enviando-as para os
países da Comunidade Britânica, principalmente Austrália e Canadá, mas também
para o Zimbábue e a Nova Zelândia. A intenção do governo era aliviar a pressão
sobre o sistema de assistência social no Reino Unido, além de contribuir para o
povoamento de colônias e territórios remotos.
As autoridades acreditavam que as crianças seriam acolhidas
por outras instituições e famílias nos países de destino, enquanto as mães eram
convencidas de que seus filhos teriam um futuro melhor.
Realidade bem diferente
Ao desembarcarem, as crianças eram informadas de que seus
pais haviam morrido, sendo enviadas para outras famílias e orfanatos,
geralmente em lugares remotos. Muitos irmãos foram separados, sem jamais
poderem se reencontrar.
Em vários desses orfanatos, inclusive em alguns mantidos
pela Igreja Católica ou Anglicana, as crianças eram submetidas a trabalhos
forçados ou abusos sexuais. O escândalo só veio à tona nos anos 1980, quando
esses deportados, já adultos, começaram a procurar seus pais biológicos. O caso
chamou atenção de uma assistente social do Reino Unido, que desde então vem
trabalhando para reunir essas pessoas e suas famílias.
Tanto o governo da Austrália como o do Reino Unido fizeram
um pedido especial de desculpas às vítimas, cujas histórias inspiraram o filme
Laranjas e Sol, de 2010. Algumas já conseguiram indenizações pelos maus-tratos
sofridos.
Abusos sistemáticos na Grã-Bretanha
O caso faz parte de um grande inquérito estabelecido em 2014
pela primeira-ministra Theresa May, que, na época, era ministra do Interior.
Foi uma resposta ao enorme escândalo gerado quando vieram à tona as acusações
de estupro e abuso sexual por parte de um famoso apresentador de televisão, Jim
Saville. Uma comissão independente foi criada, com especialistas de várias
áreas do setor de segurança social e atenção ao menor.
O objetivo do atual inquérito é investigar as falhas de
várias instituições britânicas nos cuidados e na proteção de crianças e
adolescentes. Além do envio sistemático de crianças para o exterior, a comissão
está investigando denúncias de abusos cometidos em hospitais, escolas, igrejas,
orfanatos, entre outras instituições, além da própria BBC, onde Saville
trabalhou.
Esperança de justiça
As primeiras audiências para o caso das crianças enviadas
para o exterior ocorreram ontem (27) e foram marcadas por relatos extremamente
comoventes. Algumas das vítimas, hoje idosas, falaram da dor e do trauma que as
perseguiram por todas estas décadas.
O depoimento mais marcante do dia foi o de David Hill, de 71
anos, que pediu que os perpetradores dos abusos tenham seus nomes divulgados e
sejam levados a julgamento. O inquérito como um todo ainda vai analisar
diferentes casos nos próximos meses, e a comissão independente só deve divulgar
sua análise daqui a pelo menos um ano.
Foto: Reprodução