Misto de sentimentos marca saída dos militares brasileiros do Haiti
De acordo com o Ministério da Defesa, a previsão é encerrar as operações de manutenção da lei e da ordem até o dia 1º de setembro e trazer de volta 90% dos militares brasileiros até 15 de setembro
A pouco mais de três meses para o fim da Missão de
Estabilização da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti, os últimos 978
militares brasileiros a participar da chamada Operação Minustah (abreviatura do
nome da missão, em francês) se preparam para retornar ao Brasil, experimentando
um misto de sentimentos e a expectativa de que o povo haitiano conheça tempos
melhores.
Segundo a Resolução 2.350/2017, aprovada pelo Conselho
Segurança das Nações Unidas em abril deste ano, todo o efetivo militar empenhado
na missão deve deixar o país gradualmente, até 15 de outubro, quando a operação
será oficialmente encerrada. A partir desta data, a Organização das Nações
Unidas (ONU) instituirá sua Missão de Apoio à Justiça (Minujusth) naquele que é
considerado o país mais pobre das Américas e um dos mais carentes do mundo.
A desmobilização do efetivo teve início no último dia 26. As
ações, no entanto, continuam. O Batalhão de Infantaria brasileiro, por exemplo,
vem ajudando no mapeamento dos locais mais suscetíveis a desastres naturais. O
conhecimento prévio destes locais é extremamente importante caso o país
caribenho volte a ser atingido, por exemplo, por um furacão, fenômeno comum
entre os meses de junho e novembro. Segundo dados da ONU, o Haiti é o país com
o maior número de vítimas fatais por catástrofes naturais.
Em 15 de junho, a Minustah transferiu para a Polícia
Nacional haitiana o policiamento de Cité Soleil, comuna do coração da capital haitiana, Porto
Príncipe, que, até 2006, era dominada por gangues que ameaçavam os
moradores, trabalhadores e qualquer pessoa que visitasse o local. A tropa
brasileira continua ocupando a base militar instalada no local e realizando
patrulhas esporádicas, mas após ter sido considerada uma das áreas mais
violentas do mundo, hoje, Cité Soleil é tida como local relativamente seguro.
De acordo com o Ministério da Defesa, a previsão é encerrar
as operações de manutenção da lei e da ordem até o dia 1º de setembro e trazer
de volta à casa 90% dos militares brasileiros até 15 de setembro. Os soldados e
oficiais que permanecerem no país após esta data serão encarregados de cuidar
exclusivamente das últimas medidas administrativas necessárias à repatriação,
até 15 de outubro, de todo o material e equipamento brasileiro.
Segundo o comandante de esquadrão do Pelotão de Fuzileiros,
cabo Walace Leite Dantas, um misto de sentimentos cresce à medida que se
aproxima a data do encerramento da missão. “O sentimento de servir no Haiti,
especialmente neste contingente responsável por encerrar a presença brasileira
junto a Minustah, mistura felicidade com a responsabilidade de não jogar fora
tudo o que foi feito pelos que nos antecederam”, disse Dantas a Agência
Brasil. “Não vou dizer que a expectativa de retornar ao Brasil aumenta à medida
que se aproxima a data final porque a vontade de ficar e continuar ajudando
quem precisa é maior”, completou o cabo.
Desde 2004, quando foi escolhido para liderar a missão de
estabilização formada por tropas de 16 países, o Brasil enviou ao país cerca de
37 mil militares, segundo o Ministério da Defesa. O maior contingente é o do
Exército, que mobilizou 30.359 homens e mulheres. A Marinha enviou 6.299
militares e a Aeronáutica, 350. O efetivo que se encontra no Haiti desde maio é
o 26º e último contingente brasileiro deslocado com a missão de ajudar a
reestabelecer a segurança e a normalidade institucional após a turbulência
política que culminou com episódios de violência durante protestos e
manifestações políticas e com a renúncia do então presidente Jean Bertrand
Aristide, eleito em 2000.
Para o comandante do esquadrão de fuzileiros, capitão Daniel
Nicolini de Oliveira, a participação brasileira no Haiti deixa o sentimento de
dever cumprido, mas também a apreensão pela responsabilidade de que os
resultados positivos da missão sejam mantidos.
“Hoje, ao andarmos pelo Haiti, constatamos o quanto a
Minustah ajudou o país. A expectativa de retornar ao Brasil e rever a todos os
que nos apoiaram e que torcem por nós é grande. Assim como é grande a
responsabilidade de desmobilizarmos o batalhão e repatriar todo o material
brasileiro, o que demanda uma logística muito grande”, comentou o capitão,
convencido de que o efetivo brasileiro “somou positivamente para com a missão
da ONU”.
Oliveira diz que guardará a lembrança de um país receptivo,
cujo povo vem se esforçando para melhorar a cada dia. “Também guardarei a
lembrança de como é gratificante poder ajudar o próximo; do reconhecimento que
temos quando andamos nas ruas e de como crescemos pessoal e profissionalmente
travando contato com uma outra cultura e com problemas diversos. Esta foi uma
experiência ímpar para nós, soldados da paz”, acrescentou o capitão.
Quando recebeu o convite do Conselho de Segurança da ONU
para liderar a Minustah, o governo brasileiro enxergou a oportunidade de, além
de ajudar o Haiti, projetar a imagem do Brasil internacionalmente, o que
coincidiu com o projeto estratégico de tentar consolidar a liderança regional
do país. Ao longo dos anos, principalmente durante os primeiros tempos, não
faltaram críticas à iniciativa. Como as feitas por entidades que classificavam
a presença militar estrangeira como uma ação intervencionista, que desmobilizava
da capacidade do Haiti encontrar soluções democráticas para seus próprios
problemas políticos. Em 2006, o então ministro da Defesa brasileiro, Celso Amorim, enfatizou, durante reunião com representantes
de 16 países e de 11 organizações internacionais, que a ação internacional
deveria focar mais no combate à pobreza e no fortalecimento da capacidade do
Estado haitiano de prestar serviços à população, com “bulldozers [escavadeiras]
e betoneiras ocupando o lugar dos carros de combate”.
Em janeiro de 2010, quando o Haiti foi devastado por um
terremoto de 7 graus na escala Richter, a situação humanitária se agravou e a
ajuda internacional se tornou ainda mais necessária. Mais de 220 mil pessoas
morreram, entre elas a médica brasileira Zilda Arns, fundadora da Pastoral da
Criança, e o diplomata brasileiro Luiz Carlos da Costa, vice-chefe da missão de
paz da ONU. Cerca de 300 mil pessoas ficaram feridas e mais de 1,5 milhão de
haitianos ficaram desabrigados. Em meio à destruição, uma epidemia de cólera se
alastrou entre a população, provocando uma nova onda de violência que precisou
ser contida com o uso da força.
Infelizmente, a tragédia haitiana ainda estava longe do fim.
Em outubro de 2016, o país foi atingido pelo Furacão Matthew, que afetou cerca
de 2 milhões de pessoas, matando centenas delas. O furacão também destruiu
sistemas de água e esgoto recém-construídos, provocando inundações e agravando
os problemas de saúde pública. O efetivo da Minustah foi novamente acionado
para desobstruir estradas bloqueadas e levar água, comida e medicamentos à
população de comunidades isoladas, além de, mais uma vez, ajudar na
reconstrução de casas e da infraestrutura afetada.
Os brasileiros de “capacetes azuis” (usados pelos militares
que integram a missão de paz) também tocaram obras de engenharia importantes
para a reconstrução do Haiti. Para se ter uma ideia, entre os 978 militares do
atual contingente brasileiro no país, 120 integram a Companhia de Engenharia de
Força e Paz. Ao longo dos anos, a companhia participou de inúmeras ações com
vista à melhoria da infraestrutura nacional e das condições de vida dos
haitianos, como a construção de escolas, orfanatos, hospitais, unidades de
polícia e estradas e outras instalações militares, além da perfuração de poços
artesianos, regularização de terrenos e remoção de escombros e de entulho.
Já os 850 membros do Batalhão de Infantaria continuam
encarregados da missão de manter um ambiente seguro e estável, realizando
patrulhas, escoltando comboios, fiscalizando o movimento nas principais
estradas e avenidas haitianas e dando a segurança necessárias às demais ações
humanitárias.
Por outro lado, ao participar de uma audiência pública na
Câmara dos Deputados, no último dia 5, o comandante do Exército, general
Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, disse que, embora a participação militar no
Haiti seja um caso de sucesso junto a ONU, “talvez o maior caso de êxito em
missões de paz”, o Brasil deixou de aproveitar as oportunidades econômicas
decorrentes dos esforços empenhados.
“Chegamos [ao Haiti] desavisados e perdemos enormes
oportunidades porque pouco conseguimos aportar e criar [em termos de] oportunidades
para as empresas brasileiras. Também negligenciamos trazer lideranças haitianas
para o Brasil, para se capacitarem”, comentou o comandante ao defender a
importância de uma maior integração entre as Forças Armadas, o serviço
diplomático brasileiro e a área econômica no tocante a assuntos estratégicos
militares.
Segundo dados do Sistema Integrado de Administração
Financeira do Governo Federal, de 2004 até o fim de 2016, o Brasil investiu
cerca de R$ 2,5 bilhões na Minustah. Cerca de R$ 431,3 milhões foram
reembolsados pela ONU.
Agência Brasil