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terça-feira, 26 de novembro de 2024
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LEITURA

A virada do século vista pela periferia do mundo

Abolição e grandes guerras são pano de fundo para personagem desiludido com futuro

Postado em 11 de janeiro de 2018 por Sheyla Sousa
A virada do século  vista pela periferia do mundo
Abolição e grandes guerras são pano de fundo para personagem desiludido com futuro

GUSTAVO MOTTA*

Baseado em fatos reais, o livro O Fazendeiro Tibúrcio foi lançado pela jornalista e escritora Waldineia Malheiros Ladislau – que não gastou um único centavo para produzir a publicação. “Eu lancei o livro pela plataforma da Amazon, que disponibiliza ferramentas de diagramação e produção de arte”, conta a autora que sempre foi apaixonada por escrever. “Eu optei pelo jornalismo porque não existia curso superior para ser escritora”, afirma  a risonha Waldineia.

O Fazendeiro Tibúrcio é uma história original inspirada na trajetória real de Tibúrcio de Oliveira, bisavô da escritora. O romance começa nos tempos da abolição da escravatura (1888) e acompanha o protagonista até alguns anos após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em Montes Claros (MG). A história de um homem solitário que amava as suas terras e tinha o sonho de deixar as propriedades aos descendentes transcorre até a sua desilusão com o progresso trazido pela máquina e pela indústria – que também ocasionam a guerra, injustiças e mortes.

A autora

Waldineia Ladislau é mineira da Belo Horizonte, mas reside em Goiânia desde a adolescência. Capricorniana, completa 56 anos de idade no próximo dia 11. Formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (1984), atuou por mais de três décadas como repórter e colunista em veículos diários, além de ter executado trabalhos em assessoria de imprensa e publicidade. O gosto pela escrita sempre a acompanhou, mas a prática de lançar livros sempre foi adiada em virtude do trabalho: “Por uns 30 anos eu me dediquei ao trabalho em redação, mas agora pretendo revisar e publicar os meus escritos”.

A autora tem outros projetos para publicação, como um romance que começou a ser escrito ainda na década de 1990, com máquina de datilografia. “Agora eu tenho o trabalho de digitar todos os textos (risos)”, pontua. Outro projeto inclui uma coletânea de contos urbanos que foram escritos próximos da virada do século, e já pretende pensar uma nova história caso tenha alguma experiência na África do Sul, para onde desembarca no fim do mês. A escritora conversou com o “Essência” sobre o gosto pela escrita e leitura, os seus personagens, influências e o impacto de novas tecnologias no surgimento de novos escritores. 

Entrevista: Waldineia Ladislau 

O que te levou a escrever esse livro?

Ele é baseado em fatos reais. Há cerca de dez anos eu estava conversando com uma tia muito querida, e ela começou a falar de um avô dela sobre quem eu nunca tinha escutado nada a respeito.  Eu fiquei com essa história na cabeça – sobre o Tibúrcio, e o fato dele ter sido um fazendeiro que presenciou a abolição da escravatura e viveu o cotidiano daquela época. A respeito da Lei Áurea, uma coisa que eu registro no livro é que, mesmo em condição de libertos, muitos negros ainda eram mantidos nas fazendas pelos senhores como escravos – pelo interesse dos latifundiários ou mesmo pela demora para uma notícia chegar da capital até o interior de Minas Gerais.

Ele viu muita coisa – viveu e sofreu muito. Essa história chamou a minha atenção, e quando eu fui perguntar pra minha mãe se ela já tinha ouvido falar sobre Tibúrcio Oliveira, descobri que ela já sabia de algumas coisas a respeito dele, mas que desconhecia muito de sua trajetória. Foi com base em conversas com a minha tia – e também com a minha mãe – que eu fui escrevendo o livro. O Tibúrcio que aparece na publicação é totalmente real, mas eu tive que criar outros personagens para complementar a trama. Então a base para o livro vem das conversas com parentes que duraram meses.

Você sempre teve o sonho de escrever?

Eu sempre gostei muito de escrever e também de ler, e por isso eu fui parar no Jornalismo (risos). Eu lembro que quando ingressei na universidade (UFG, 1980) um dos professores pediu para que cada aluno se apresentasse e falasse de suas expectativas sobre o curso. Eu disse que queria ser escritora e como não havia curso superior para isso eu caí na profissão de jornalista. Eu também era uma ávida leitora, um verdadeiro rato de biblioteca (risos). Lia clássicos da literatura nacional, obras universais, e também escrevia desde adolescente.

Quando veio a profissão, o casamento e outras responsabilidades, como as minhas duas filhas, eu comecei a diminuir esse ritmo. Então acabei dando uma pausa de 30 anos nas atividades mais intensas de escrita e na execução do sonho de publicar algo, porque meu tempo era para criar a família e trabalhar em redação de jornais.  Mas quando eu entrei na faculdade, tinha justamente o intuito de me aperfeiçoar como escritora por meio das técnicas e tipos de texto que a academia disponibiliza conhecer.

Você tem outros projetos em andamento?

Sim, mas prefiro não comentar sobre eles (risos). Vamos manter a surpresa…

Você disse que foi impedida de se dedicar à atividade de escrita e publicações devido ao trabalho e família, mas deve ter escritos antigos que ainda não viram a luz do dia, não?

Vou falar um pouco sobre esses projetos então (risos). Tem um que é maior que o recém-publicado (O Fazendeiro Tibúrcio tem 199 páginas) com cerca de 230 páginas – caso seja passado ao modelo para impressão. Não posso revelar detalhes da trama, mas é um romance que eu datilografei ainda nos anos 1990. Então preciso passar ele ao modelo digital e revisar tudo – vai ser um grande trabalho com esses papéis todos. Em poesia, eu sempre admirei quem escreve esse tipo de texto, porque é um dom divino. Eu mesma costumo escrever poesia e jogar fora (risos). Quando gosto, eu guardo por uns tempos até reler e ter certeza que não ficou bom, então mando pra lixeira.

Entre 1997 e 1998 eu participei de uma oficina para escrita de contos e escrevi nesse gênero por algum tempo até o começo dos anos 2000. Eu pretendo reunir os meus contos, que são histórias urbanas, e lançar o mais rápido possível – ele já está praticamente pronto. Esse deve sair com o título Fragmentos – Contos Urbanos, porque eu acho que o conto é justamente isso – uma história menor que é o fragmento de algo macro. Quando você vê uma história e personagens pelo buraco de uma fechadura, você recolhe dali uma parte da narrativa. Eu também estou terminando agora a revisão de um terceiro projeto, mas vou esperar mais para que ele amadureça – eu sou muito rígida com a minha escrita, mas acredito que seja melhor seguir assim do que me envergonhar de algo que eu escrevi no passado.

Muitos artistas levam a sério a discussão do porquê se fazer arte. Qual o motivo da sua escrita?

Eu escrevo porque preciso disso (risos). Eu sinto que isso é fundamental para mim – não é algo que eu possa controlar, porque os personagens simplesmente brotam na minha cabeça. Eu preciso coloca-los no papel, preciso dar vida a eles. Eu não sou muito ligada em escrever a aparência física deles – exceto quando é indispensável para se entender algo na narrativa – então eu gosto que cada leitor os imagine como são. Por outro lado, eu gosto de aprofundar o desenvolvimento de aspectos psicológicos nas personas, mas em conclusão, eu escrevo apenas por necessidade.

Então quem for ler o seu livro vai encontrar qual Tibúrcio?

Vai encontrar um homem simples, de origem rural. Um fazendeiro – não um grande latifundiário, mas alguém do campo que assistiu, de longe, a mudança dos tempos e que tinha muita esperança no que o progresso poderia trazer para o futuro. Acontecimentos pessoais acabam mudando as suas expectativas sobre o mundo e ele teve de se adaptar a uma nova realidade social e familiar. Ele é todo real – pelo menos é oriundo dos relatos que eu recebi e tomo como reais. As ações, pensamentos e a sua forma de se relacionar com espaços e outras pessoas também parte das informações que eu recebi sobre o Tibúrcio Oliveira, que deve ter nascido por volta de 1860, cuja história eu apenas conheço – e o livro conta – a partir da fase adulta.

Eu não trabalhei com datas muito precisas, mas o leitor acompanha a vida dele logo após a abolição. Outros personagens também são verídicos, como a esposa dele e minha bisavó Henriqueta, além de membros da família e descendentes. É pelos olhos dele e desses personagens que a história oficial é contada, mas sempre com algum distanciamento, até porque o próprio Tibúrcio era um homem simples e o acesso à informação era muito limitado naqueles tempos.

Então a história oficial é apenas um pano de fundo…

A história oficial não chega a influenciar a vida dos personagens, até porque eles vivem muito distantes dos grandes centros da ebulição tecnológica e política – é uma cidade no interior de Minas. O Tibúrcio observa tudo à distância, na periferia do mundo. Ele não foi pra guerra, por exemplo, mas viu de longe que o mundo não estava ficando mais pacífico, fraternal e civilizado. Ele viu que o mundo não estava se tornando um lugar melhor para viver – não chega a se prender a um passado retrógrado ou medievalesco como Dom Quixote, mas assiste à passagem do tempo sempre distante do oficial, daquilo que é o centro do progresso.

As informações mais oficiais e políticas demoravam muito para chegar naqueles tempos. Então eu tive que introduzir personagens que carregassem essas informações ou que fossem menos provincianos – como é o caso de um médico jovem, que estudou em Portugal porque estava sendo perseguido devido aos seus ideais abolicionistas. O livro também apresenta, de modo secundário, histórias de negros que tiveram de lutar pela sua emancipação mesmo após a Lei Áurea.

Na atualidade, como as pessoas tem lidado com a passagem do tempo?

O século 20 introduziu muitas mudanças sociais e tecnológicas que podem ter confundido um pouco a mente das pessoas. Eu tenho a sensação que somos todos levados por uma onda do que é a tendência do momento, seja no uso de tecnologias, no comportamento ou consumo de produtos. Por outro lado, o século 21 parece dar continuidade a essa inundação de novidades que começou nos 100 anos anteriores. Então, antes da última virada de século, já tínhamos um prenúncio de como as coisas seriam – ou melhor, de como continuariam. Eu acho que as pessoas nascidas no século anterior já estão mais acostumadas a toda essa ebulição cultural, tanto que não é muito perceptível uma ruptura comportamental em meados de 2000.

Eu acho que a verdadeira ruptura aconteceu na época do Tibúrcio, entre os séculos 19 e 20. Ali sim as mudanças eram bem perceptíveis, quando a informação começa a correr, o país começa a se urbanizar e industrializar de fato. Foi o meu bisavô que viu a grande mudança trazida pelo chamado “progresso”, que trouxe junto a tragédia da violência e das guerras – isso até chocava na época. Hoje as pessoas almoçam enquanto assistem tragédias na televisão.

As tecnologias estão levando as pessoas a enxergar de modo diferente o ‘horror’ …

Com certeza, na verdade isso está sendo banalizado. Na época do meu bisavô, qual era a notícia de destaque? Era aquela de tempos atrás que acabou de chegar na boca do povo e que vai ser discutida e aprofundada até mesmo por meses – até que uma nova notícia chegue dos grandes centros. Hoje, temos acesso à informação a todo momento, e nem sabemos ao certo no que pensar, e como pensar – e isso pode nos levar a uma apatia a fatos que deveriam chocar as pessoas. O terrorismo, por exemplo, é um assunto em alta desde a década de 1990, que acompanhamos com muito mais rapidez do que comparado a quando o tema começou a surgir nas manchetes.

Essa velocidade da informação tira a nossa sensibilidade aos fatos – não discutimos mais os assuntos, não nos alegramos, chocamos ou nos encantamos com as notícias. Uma coisa que eu acho engraçado sobre o passado é que, apesar do ritmo de vida lento e da baixa expectativa de vida, as pessoas tinham mais tempo para realizarem coisas importantes na história. É curioso pensar que os grandes personagens do nosso passado viveram pouco e realizaram muito.

CONTINUA NA PÁGINA 16 

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