Transgêneros no esporte abrem debate sobre futuro nas competições
Em janeiro do ano passado, o Comitê Olímpico Internacional (COI) passou a permitir que atletas transgêneros competissem sem a necessidade de cirurgia de mudança de gênero
No meio da semana, a jogadora de hóquei Jessica Platt, do Toronto Furies, da Liga Canadense, anunciou no Twitter que é uma mulher trans (nasceu biologicamente homem e mudou de gênero). Mais um caso que traz de volta a questão da inserção dos transgêneros no esporte, de elite ou não, e abre um debate: como será a divisão das modalidades em algumas décadas?
Em janeiro do ano passado, o Comitê Olímpico Internacional (COI) passou a permitir que atletas transgêneros competissem sem a necessidade de cirurgia de mudança de gênero, mas com a exigência da reposição hormonal. Considerado um passo relevante na busca de equidade no esporte, a decisão está longe de ser aceita de forma unânime. Da simples manifestação de preconceito aos questionamentos científicos sérios e além disso sem resposta, as estruturas esportivas se veem numa sinuca: como se mostrarão sensíveis e atualizadas com o avanço do debate social, ao mesmo tempo em que precisam garantir que homens e mulheres terão rivais em iguais condições?
“É uma questão social antes de mais nada. A luta é para que sejamos reconhecidas dentro do gênero em que nos reconhecemos. Queremos jogar, coabitar no espaço do gênero feminino ou masculino, uma vez que estamos numa sociedade binária”, diz Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais e presidenta do Conselho LGBT de Niterói.
Bruna acredita que esse discurso das vantagens de uma mulher trans pela questão física é uma forma de maquiar o preconceito.
“As pessoas trans querem ser incluídas. Vai além de ter ou não ter vantagem física. Considero que a discussão é muito favorável desde que as opiniões sejam colocadas de forma clara, sem discriminação”, afirma Bruna. “O mundo evoluiu”.
Por enquanto, não há pesquisas científicas conclusivas sobre os efeitos da terapia hormonal no corpo de quem passa pela mudança de gênero a longo prazo. quer dizer, as sociedades médica e esportiva não têm comprovação suficiente para determinar se as reposições feitas ao longo do tempo vão equalizar as diferenças entre as características masculinas e femininas que conferem mais (ou menos) força física em relação aos cisgêneros (aqueles que se identificam, em todos os aspectos, com o gênero de nascença).
“Do ponto de vista médico, acho um pouco precoce permitir (trans em competições) porque não há um estudo definitivo. Para ter mudanças significativas no corpo seriam necessários pelo menos uns 15 anos de acompanhamento dos atletas para avaliar a reação do corpo”, explica a endocrinologista Karen de Marca Seidel, especialista em endocrinologia e metabologia pela Associação Médica Brasileira e coordenadora do ambulatório municipal de disforia de gênero. “Mas não seria justo dizer que as pessoas não podem competir igualmente”.
O caso é mais polêmico entre as mulheres trans, já que a carga genética masculina seria mantida. Assim, a força física, a densidade óssea e a massa muscular delas continuariam superiores às das mulheres cis, apesar da terapia hormonal que reduz o nível de testosterona — a origem masculina naturalmente confere às células mais receptores do hormônio. Sobretudo entre as pessoas que fizeram o tratamento após a puberdade, como a lutadora de MMA Fallon Fox, que venceu cinco das seis lutas que disputou até 2014.
“São vários fatores que determinam o gênero. Por isso, os transgêneros que fazem a mudança após a puberdade mantêm essa memória genética, uma vez que já adquiriram as características masculinas. Quem faz antes ou retarda a puberdade terá efeitos diferentes no corpo”, afirma Karen.
Terceira categoria é rechaçada
Claudio Gil, pós-doutor em Fisiologia e Medicina do Exercício na McMaster University, no Canadá, e diretor de pesquisa da Clínica de Medicina do Exercício, destaca além disso a questão do doping. Os homens trans fazem uso de testosterona exógena, considerado ilegal pelas entidades esportivas, mas necessário ao corpo deles: “Doping é tudo o que é feito para ter benefício de performance ilegal. Para mim, não seria esse o caso. Vamos achar uma maneira de viabilizar isso de forma justa. Vai mexer com todo o ecossistema do esporte”.
A possibilidade da criação de uma terceira categoria é rechaçada pelos ativistas, além disso que tenham dificuldades de se inserir no modelo atual. O trans Hugo Narick, de 23 anos, jogou basquete até o fim do ensino médio na equipe feminina do colégio, em Manaus. Mas o regulamento da federação local não prevê a situação de transgêneros, e ele se viu impedido de atuar entre os homens na faculdade. Na monografia de fim do curso de Educação Física pela Universidade Federal do Amazonas, ele pesquisou o assunto: “No Brasil, poucas entidades têm políticas e regras para inserir pessoas trans no esporte. Acredito que, ao longo dos anos, e com as novas descobertas, as pessoas trans poderão competir sem contratempo algum”.
Bruna Benevides leva a discussão além. “No esporte, a disputa sempre se dá pela vantagem que um tem sobre o outro, independentemente de gênero. Então, aonde está a vantagem do transgênero? “, analisa. “Quando começarmos a discutir o binarismo da sociedade e seus efeitos, poderemos pensar num futuro diferente, sem divisões”.
(O Globo)