Fogaréu atrai milhares de fieis
À meia-noite 40 faricocos representam a prisão de Jesus Cristo pelas ruas e becos antigos da Cidade de Goiás
Igor Caldas*
O fogo nas tochas dos farricocos da procissão do fogaréu mantém acesa a chama da memória cultural da Cidade de Goiás e do patrimônio do Estado há 274 anos. A partir do primeiro minuto desta quinta-feira santa, pessoas comuns, moradores da antiga capital do Estado, se cobrirão com as vestimentas coloridas tradicionais para representar os algozes que capturaram cristo e levaram-no ao julgamento de Poncio Pilatos. No último ano, a cidade recebeu mais de 50 mil visitantes para participarem da procissão. Segundo a Prefeitura da Cidade de Goiás, todos os leitos disponíveis no município já estão ocupados.
Este ano a procissão contará com apoio de pessoas jurídicas para custear as despesas do evento. O presidente da Organização Vilaboense de Artes e Tradições, Rodrigo Pássaro, concedeu entrevista a uma rádio da Capital para falar sobre as mudanças que a cerimônia terá este ano. De acordo com Rodrigo, a cidade espera ainda mais visitantes para a noite do fogaréu. Dentre as mudanças anunciadas, estão as novas roupas que serão usadas pelos farricocos. Segundo Pássaro, as vestimentas usadas em edições anteriores foram confeccionadas em 1975 para a cerimônia de 1976.
O desgaste dos 54 anos de uso das roupas ocasionou manchas, rasgados e buracos cujos remendos não estão à altura da grandiosidade da cerimônia. Por isso novas roupas, idênticas as que foram sempre usadas pelos representantes dos algozes de Cristo, foram confeccionadas. As antigas vestimentas vão compor a exposição de um museu permanente da Semana Santa da Cidade de Goiás. O número de pessoas que compõem o cordão de isolamento dos farricocos também aumentou para prevenir acidentes e garantir a beleza da cerimônia.
Outra mudança anunciada por Rodrigo é que durante o espetáculo deste ano, todas as ruas que serão palco da procissão terão as luzes desligadas. Segundo o Presidente da OVAT, a Enel distribuição elétrica pegou todos de surpresa ao cobrar as despesas com o desligamento das luzes na procissão do último ano. A conquista para a edição de 2019 foi a negociação com a Enel do Rio de Janeiro que garantiu o desligamento das luzes sem despesas adicionais. Ele explica que qualquer iluminação diferente das emanadas pelas tochas e velas dos fiéis compromete a beleza ímpar do evento.
Segurança
O efetivo de policiais e bombeiros que trabalharão para garantir a segurança da cerimônia religiosa também aumentou. Cerca de 400 homens entre bombeiros e policiais vão compor o trabalho durante a procissão. Ainda segundo Pássaro, a OVAT trabalha 365 dias do ano na preparação da noite do fogaréu. A partir do momento em que é finalizada a procissão, eles já estão pensando na melhora da logística para a edição do ano seguinte. Além de bombeiros e policiais, aproximadamente 300 pessoas, entre membros da OVAT e servidores da prefeitura do município, estão envolvidas diretamente nos trabalhos que garantem a beleza única da noite do fogaréu.
Roteiro
A preparação dos farricocos começa às 23 horas da quarta-feira das trevas, em frente ao Quartel dos 20, prédio histórico onde as fantasias dos algozes de cristo são guardadas e cuidadosamente passadas antes da cerimônia religiosa. As tradicionais roupas são compostas de uma túnica comprida de cores diversas e por um longo capuz cônico e pontiagudo. Elas são muito semelhantes as roupas usadas em cerimônias religiosas da Semana Santa na Espanha.
A meia-noite de quinta-feira todas as luzes do Centro da Cidade de Goiás são apagadas e a única luz que resta são emanadas das tochas dos 40 farricocos e das velas seguradas pelos fiéis que acompanham a procissão. Ao som de tambores, eles caminham a pé e descalços pelas ruas e becos da cidade antiga a procura de Cristo, representado por um estandarte de linho pintado pelo artista plástico oitocentista, Veiga Valle. A procissão recorda as últimas horas de Jesus antes de ser preso e crucificado pelos soldados enviados por Caifás para prendê-lo.
Os 40 farricocos começam a caçada no primeiro minuto da madrugada desta quinta-feira saindo do Museu da Boa Morte, em frente a Praça do Coreto da cidade. A caminhada de passos apressados segue até a Igreja do Rosário que representa o local onde cristo comungou a Última Ceia com seus apóstolos. No local é feito uma parada para a encenação deste momento bíblico. Quando os algozes de cristo chegam ao local, Jesus não está, mas a caçada segue em frente.
Cristo, representado pelo estandarte de linho pintado pelo artista Veiga Valle, é encontrado apenas diante da Igreja São Francisco, que representa o Monte das Oliveiras, local em que os soldados de Caifá capturam o filho de Deus. Ouve-se então o toque do clarim pela segunda vez que anuncia a prisão de Jesus de Nazaré. O primeiro toque é feito na saída dos farricocos para iniciar a caçada ao rei dos judeus. Na época em que a comunicação por telefones e celulares era escassa o toque era fundamental para reunir os farricocos que estavam espalhados pela cidade.
O farricoco tem origem na punição de crimes da Idade Média
O espetáculo centenário teve início em 1745 quando o pároco espanhol da antiga capital do Estado de Goiás, João Perestelo de Vasconcelos Espíndola, trouxe a tradição à igreja da cidade. Segundo artigo publicado pelo doutorando em Sociologia da Universidade de Brasília, Clovis Carvalho Britto, intitulado Luzes e Trevas: Itinerários da Procissão do Fogaréu em Goiás, o personagem central da procissão do fogaréu, o farricoco, também aparece em Portugal e Espanha, assim como em representações religiosas de algumas das antigas colônias destes dois países.
O farricoco está diretamente ligado a questão da penitência da Igreja Católica. Ele servia de punição imposta àqueles que não descumprissem as determinações da Igreja. Ao invés de serem representados com o luxo demonstrado pelas irmandades, vestindo os vistosos cavaleiros com vestidos de seda e empunhando espadas de prata na caçada de Cristo, os “desviantes” deveriam comparecer as celebrações com vestimenta feita de lã grosseira e o chapéu cônico, em referência ao capuz dos condenados. Eles deveriam percorrer o caminho a pé como forma de penitência.
De acordo com o artigo, a primeira imagem do farricoco, ligada à penitência, foi reforçada por uma modalidade de pena mais branda imposta pelo Tribunal da Inquisição: o sambenito. O tribunal do Santo Ofício tinha obrigação de espionar, denunciar, prender e remeter para o julgamento de Lisboa os indivíduos que cometessem alguns dos delitos designados pela Inquisição: heresia (blasfêmia,sacrilégio, feitiçaria, protestantismo, judaísmo, pacto com o demônio); bigamia; sodomia(cópula anal e homossexualidade); e solicitação (ato desonesto ou convite dos sacerdotes no confessionário).
O sambenito era uma forma de punição às faltas consideradas mais leves pela igreja. Consistia em uma vestimenta penitencial humilhadora que identificava a condição do herege e que deveria ser usado por tempo determinado pelo Tribunal da Inquisição, inclusive correndo o risco de serem açoitados por fiéis em vias públicas. Hoje, diferente de ser uma punição, o ato de se vestir de farricoco é considerado uma honra para os moradores da Cidade de Goiás que elevam o motivo de penitência ao lugar da preservação da tradição e identidade de nosso Estado.