O Hoje, O Melhor Conteúdo Online e Impresso, Notícias, Goiânia, Goiás Brasil e do Mundo - Skip to main content

sábado, 21 de dezembro de 2024
Cidades

Fogaréu atrai milhares de fieis

À meia-noite 40 faricocos representam a prisão de Jesus Cristo pelas ruas e becos antigos da Cidade de Goiás

Postado em 17 de abril de 2019 por Sheyla Sousa
Pandemia do Coronavírus afeta calendário católico com cancelamento de celebrações
Assim como outras celebrações

Igor Caldas*

O fogo nas tochas dos farricocos da procissão do fogaréu mantém acesa a chama da memória cultural da Cidade de Goiás e do patrimônio do Estado há 274 anos. A partir do primeiro minuto desta quinta-feira santa, pessoas comuns, moradores da antiga capital do Estado, se cobrirão com as vestimentas coloridas tradicionais para representar os algozes que capturaram cristo e levaram-no ao julgamento de Poncio Pilatos. No último ano, a cidade recebeu mais de 50 mil visitantes para participarem da procissão. Segundo a Prefeitura da Cidade de Goiás, todos os leitos disponíveis no município já estão ocupados.

Este ano a procissão contará com apoio de pessoas jurídicas para custear as despesas do evento. O presidente da Organização Vilaboense de Artes e Tradições, Rodrigo Pássaro, concedeu entrevista a uma rádio da Capital para falar sobre as mudanças que a cerimônia terá este ano. De acordo com Rodrigo, a cidade espera ainda mais visitantes para a noite do fogaréu. Dentre as mudanças anunciadas, estão as novas roupas que serão usadas pelos farricocos. Segundo Pássaro, as vestimentas usadas em edições anteriores foram confeccionadas em 1975 para a cerimônia de 1976.

O desgaste dos 54 anos de uso das roupas ocasionou manchas, rasgados e buracos cujos remendos não estão à altura da grandiosidade da cerimônia. Por isso novas roupas, idênticas as que foram sempre usadas pelos representantes dos algozes de Cristo, foram confeccionadas. As antigas vestimentas vão compor a exposição de um museu permanente da Semana Santa da Cidade de Goiás. O número de pessoas que compõem o cordão de isolamento dos farricocos também aumentou para prevenir acidentes e garantir a beleza da cerimônia.

Outra mudança anunciada por Rodrigo é que durante o espetáculo deste ano, todas as ruas que serão palco da procissão terão as luzes desligadas. Segundo o Presidente da OVAT, a Enel distribuição elétrica pegou todos de surpresa ao cobrar as despesas com o desligamento das luzes na procissão do último ano. A conquista para a edição de 2019 foi a negociação com a Enel do Rio de Janeiro que garantiu o desligamento das luzes sem despesas adicionais. Ele explica que qualquer iluminação diferente das emanadas pelas tochas e velas dos fiéis compromete a beleza ímpar do evento.

Segurança

O efetivo de policiais e bombeiros que trabalharão para garantir a segurança da cerimônia religiosa também aumentou. Cerca de 400 homens entre bombeiros e policiais vão compor o trabalho durante a procissão. Ainda segundo Pássaro, a OVAT trabalha 365 dias do ano na preparação da noite do fogaréu. A partir do momento em que é finalizada a procissão, eles já estão pensando na melhora da logística para a edição do ano seguinte. Além de bombeiros e policiais, aproximadamente 300 pessoas, entre membros da OVAT e servidores da prefeitura do município, estão envolvidas diretamente nos trabalhos que garantem a beleza única da noite do fogaréu.

Roteiro

A preparação dos farricocos começa às 23 horas da quarta-feira das trevas, em frente ao Quartel dos 20, prédio histórico onde as fantasias dos algozes de cristo são guardadas e cuidadosamente passadas antes da cerimônia religiosa. As tradicionais roupas são compostas de uma túnica comprida de cores diversas e por um longo capuz cônico e pontiagudo. Elas são muito semelhantes as roupas usadas em cerimônias religiosas da Semana Santa na Espanha.

A meia-noite de quinta-feira todas as luzes do Centro da Cidade de Goiás são apagadas e a única luz que resta são emanadas das tochas dos 40 farricocos e das velas seguradas pelos fiéis que acompanham a procissão. Ao som de tambores, eles caminham a pé e descalços pelas ruas e becos da cidade antiga a procura de Cristo, representado por um estandarte de linho pintado pelo artista plástico oitocentista, Veiga Valle. A procissão recorda as últimas horas de Jesus antes de ser preso e crucificado pelos soldados enviados por Caifás para prendê-lo.

Os 40 farricocos começam a caçada no primeiro minuto da madrugada desta quinta-feira saindo do Museu da Boa Morte, em frente a Praça do Coreto da cidade. A caminhada de passos apressados segue até a Igreja do Rosário que representa o local onde cristo comungou a Última Ceia com seus apóstolos. No local é feito uma parada para a encenação deste momento bíblico. Quando os algozes de cristo chegam ao local, Jesus não está, mas a caçada segue em frente.

Cristo, representado pelo estandarte de linho pintado pelo artista Veiga Valle, é encontrado apenas diante da Igreja São Francisco, que representa o Monte das Oliveiras, local em que os soldados de Caifá capturam o filho de Deus. Ouve-se então o toque do clarim pela segunda vez que anuncia a prisão de Jesus de Nazaré. O primeiro toque é feito na saída dos farricocos para iniciar a caçada ao rei dos judeus. Na época em que a comunicação por telefones e celulares era escassa o toque era fundamental para reunir os farricocos que estavam espalhados pela cidade. 

O farricoco tem origem na punição de crimes da Idade Média 

O espetáculo centenário teve início em 1745 quando o pároco espanhol da antiga capital do Estado de Goiás, João Perestelo de Vasconcelos Espíndola, trouxe a tradição à igreja da cidade.  Segundo artigo publicado pelo doutorando em Sociologia da Universidade de Brasília, Clovis Carvalho Britto, intitulado Luzes e Trevas: Itinerários da Procissão do Fogaréu em Goiás, o personagem central da procissão do fogaréu, o farricoco, também aparece em Portugal e Espanha, assim como em representações religiosas de algumas das antigas colônias destes dois países.

O farricoco está diretamente ligado a questão da penitência da Igreja Católica. Ele servia de punição imposta àqueles que não descumprissem as determinações da Igreja. Ao invés de serem representados com o luxo demonstrado pelas irmandades, vestindo os vistosos cavaleiros com vestidos de seda e empunhando espadas de prata na caçada de Cristo, os “desviantes” deveriam comparecer as celebrações com vestimenta feita de lã grosseira e o chapéu cônico, em referência ao capuz dos condenados. Eles deveriam percorrer o caminho a pé como forma de penitência.

De acordo com o artigo, a primeira imagem do farricoco, ligada à penitência, foi reforçada por uma modalidade de pena mais branda imposta pelo Tribunal da Inquisição: o sambenito. O tribunal do Santo Ofício tinha obrigação de espionar, denunciar, prender e remeter para o julgamento de Lisboa os indivíduos que cometessem  alguns dos delitos designados pela Inquisição: heresia (blasfêmia,sacrilégio, feitiçaria, protestantismo, judaísmo, pacto com o demônio); bigamia; sodomia(cópula anal e homossexualidade); e solicitação (ato desonesto ou convite dos sacerdotes no confessionário).

O sambenito era uma forma de punição às faltas consideradas mais leves pela igreja. Consistia em uma vestimenta penitencial humilhadora que identificava a condição do herege e que deveria ser usado por tempo determinado pelo Tribunal da Inquisição, inclusive correndo o risco de serem açoitados por fiéis em vias públicas. Hoje, diferente de ser uma punição, o ato de se vestir de farricoco é considerado uma honra para os moradores da Cidade de Goiás que elevam o motivo de penitência ao lugar da preservação da tradição e identidade de nosso Estado.  

Você tem WhatsApp ou Telegram? É só entrar em um dos canais de comunicação do O Hoje para receber, em primeira mão, nossas principais notícias e reportagens. Basta clicar aqui e escolher.
Veja também