Culinária goianiense: a antropologia de formação da alimentação e suas memórias coletivas
Os goianos são ricos em cultura, sabores, gostos e muita prosa boa
A riqueza do nosso Estado, Goiás, está além daquilo que podemos comprar ou vender. Os goianos são ricos em cultura, sabores, gostos e muita prosa boa. Pode ser num restaurante de fogão a lenha ou numa pamonhada com a família, que a gente se encontra, disputa qual música vai tocar, joga conversa fora e, principalmente, saboreia uma boa comida com o nariz, olhos e boca.
Como afirma a coordenadora do curso de Gastronomia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), Cristiane Souza, “comida é memória afetiva”. Uma memória que vem de muito antes de nós, dos nossos pais e, até mesmo, dos nossos avós. Um povo tão caloroso e receptivo, que foi formado por muita história boa e ruim.
Em uma leitura mais ampla, o antropólogo, educador e romancista Darcy Ribeiro fala que nós, “O Povo brasileiro”, surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos. Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo.
Dessa mesma maneira, fomos formados também como goianos. Discordo daqueles que afirmam que nossa história começou com a chegada de Bartolomeu Bueno da Silva, o famoso Anhanguera, que até possui o conhecido Monumento do Bandeirante, na Praça Atílio Correia Lima, inaugurada em 09 de novembro de 1942, no Centro da capital goiana, Goiânia.
Pois, antes dele, já havia história sendo contada aqui no coração do Brasil. No norte, às margens do Rio Araguaia, viviam os nativos indígenas Karajás, Avá-Kanoeiros e Javaés. No noroeste, os Tapuias, e próximo à Serra Dourada, os Goyazes. Povos com hábitos de pesca, da caça e da agricultura de frutos característicos do Cerrado, como cagaita, buriti, murici, pequi e jatobá.
Só aí, a partir de 1682, chegam por essas bandas os primeiros bandeirantes, vindos, principalmente, de São Paulo, Pará e Bahia. Vieram em expedições ambiciosas de exploração das riquezas que o solo goiano tem, como por exemplo, o ouro das margens do Rio Vermelho. Com eles, novos hábitos culinários e ingredientes, como amendoim, milho e carnes salgadas.
Além disso, essas expedições portuguesas também trouxeram sua economia escravocrata. Pessoas negras que, infelizmente, foram trazidas para o continente a partir do século 15 de forma desumana. Estes também somam na culinária goiana com pratos afro-brasileiros, como angu, pamonha, feijoada, mandioca, manga, quiabo, jiló e outros.
A comida goiana carrega, assim, toda essa mistura de sabores, texturas e formas de preparo. Aquilo que hoje eu e você comemos, tem origem de uma mistura de fruto indígena, do grão africano e da forma de preparo portuguesa. Algo tão nosso, tão enraizado na nossa cultura e que é um pedaço daqui, outro dali e mais um pouco de lá. Foram centenas de anos para, hoje, o goiano olhar e pensar: esse sabor é nosso.
Tradição
A comida carrega traços da memória e da cultura goiana. Um hábito alimentar que se desenvolveu de fusões e miscigenações devidas à colonização e da escassez de alimentos que vinham de outras capitanias brasileiras. A culinária goiana teve que buscar adaptações de acordo com a realidade local, principalmente, do Cerrado, que não tinha batata e mandioca, por exemplo.
As substituições na panela goiana deram origem aos nossos pratos típicos. Os goianos consumiam muito pequi, guariroba, couve, cajá-manga e mangaba, tanto para pratos salgados quanto doces, como geleias e compotas. A coordenadora do curso de Gastronomia da PUC Goiás, Cristiane Souza, destaca alguns traços da nossa culinária:
“Podemos pensar no tradicional arroz com pequi, cujo cheiro e perfume são anunciados de longe. A comida do goiano é muito amarela, é tipicamente amarela. Vocês têm a galinhada com açafrão, têm a pamonha, tem muita coisa à base de milho, que tem uma raiz muito indígena. Uma comida também com traços amargos, pois vocês comem muito jiló, muita guariroba e muitos alimentos que possuem o amargo. Mas não podemos deixar de falar sobre o fogão caipira”, lembrou.
O fogão de barro com a madeira em chamas aquece a panela de aço batido e muda o gosto do alimento. Não é só cozinhá-lo, é dar cheiro de roça, gosto de comida de vó e, principalmente, resgatar o sentimento de casa. Por isso, é fácil encontrar em Goiás aquele famoso restaurante chamado Fogão Caipira. Essa é uma tradição dos goianos que marca a nossa identidade culinária.
A nossa cozinha é marcada pela tradição de como preparar o alimento de modelo raiz. Nós depositamos na culinária a nossa identidade da roça. Mesmo com a colonização e as novas tecnologias, é aquilo que é tradicional que nos faz lembrar do Goiás. “Está longe de a modernidade inferir na nossa tradição. Goiás tem um traço ruralista, que é memória do povo goiano e é muito difícil de mexer”, afirma Cristiane.
O fogão caipira representa aquele almoço de domingo com a família, quando todos se reuniam em volta da mesa e um picava os legumes, outros usavam o pilão para pisar o alho, outro descascava as verduras e por aí vai. Tem serviço para toda a família e, principalmente, comida que sobra para levar para casa e comer noutro dia. Sem contar com a visita que chegava sem avisar e comia também, pois onde come um come dois, igual coração de mãe.
“Comer é um ato social”, pois a gente se junta para preparar o alimento e para consumi-lo. Chama os parentes, os vizinhos e os amigos. Além disso, também é identidade. É fazer um arroz igual à mãe ou roer o pequi com os dentes ou com uma colher, igual fazia o avô. A culinária goiana nos apresenta para o mundo como aquilo que nos torna diferentes e especiais.