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segunda-feira, 23 de dezembro de 2024
Parte Dois

“O Tocantins vive um Estado policialesco”, afirma ex-governador afastado

Em primeira entrevista após afastamento, Mauro Carlesse se diz vítima de um “processo político, jurídico e policial”

Postado em 14 de outubro de 2022 por Redação

Por Rubens Valente, Ciro Barros | Agência Pública

O empresário Mauro Carlesse (Agir-TO) foi afastado do cargo de governador do Tocantins em outubro de 2021 após o ministro do STJ Mauro Campbell ter acolhido um pedido da PGR, uma decisão depois referendada pela Corte Especial do tribunal. O político renunciou ao mandato em março deste ano para concorrer à vaga de senador do estado nas eleições. Há pouco mais de um mês, anunciou sua saída da disputa.

Em entrevista à Agência Pública em Palmas em agosto último, Carlesse disse que falaria pela primeira vez a jornalistas sobre o seu afastamento. Sem entrar no mérito das denúncias, às quais diz não ter acesso na íntegra até agora, o ex-governador classificou o processo que levou ao seu afastamento como “político, jurídico e policial” e que nunca foi ouvido pelo STJ antes da decisão. Acusou “um golpe de Estado mais esquisito do mundo”. Ele afirmou também que o Tocantins, que não vê um governador completar um mandato eletivo desde 2006, vive “um Estado policialesco”. Atribuiu sua queda ao conflito de sua gestão com um grupo de delegados que, segundo ele, se considerava acima das leis.

O ex-governador Carlesse, em seu apartamento em Palmas (TO), fala pela primeira vez do caso. | Foto: Reportagem Agência Pública

Tudo o que aconteceu e culminou no seu afastamento, a que o senhor a tribui, olhando para trás? Qual o motivo?

Inveja é o principal. Perseguição. Dentro do estado, nas nossas secretarias, nós colocamos técnicos. Demos abertura, sim, aos políticos, mas não interferindo na administração. Aí criou-se um grupo contra o Carlesse e começou-se a inventar histórias, né? Olha só a história. Em 2018, quando nós entramos, o governo não tinha dinheiro para pagar a folha de pagamento. Nós fomos acertando a casa, organizando. Fomos diminuindo a quantidade excessiva de pessoas dentro do Palácio do Araguaia. Pra você ter uma ideia, o palácio tinha 2 mil pessoas, [mas] não cabem 600. Tinha 2 mil! Quando você vai cortando despesas, cortando as arestas, você vai mexendo com quem? Com os políticos, que tão entranhados dentro do Estado. Pra começar, nós ganhamos de quem? Ganhamos da [senadora] Kátia Abreu, ganhamos do [deputado federal] Vicentinho [Júnior]. Se você pegar a história, desde que começou o Estado eles tão dentro da política. 

O senhor foi ouvido antes do processo de afastamento?

Nunca fui ouvido. Eles chegaram, entraram na minha casa aqui, de seis a dez policiais. Me notificaram dizendo que eu estava afastado naquele momento. Eu estava proibido de entrar em qualquer órgão público a partir daquele momento. Eu não entendi. Aceitei, eu tenho que cumprir a lei, né?, e pensei: ‘Bom, vou me defender e em breve voltarei. Eu não devo nada, nunca fiz nada’. Mas também como me defender se eu não sabia nem qual era a acusação? O senhor imagina um negócio desses? Soltou na imprensa que estava afastado por corrupção, mas cadê as provas? Nada, nada. Não tem nada.

Quem deveria tê-lo ouvido? Qual instância?

Eu acho que o próprio STJ tinha que ter me ouvido. Como governador do estado, ele tinha que ter me dado o direito de pelo menos ter me entregado a documentação na qual eu fui acusado e me ouvido, deixado meus advogados serem ouvidos. Simplesmente nós não conseguimos. Tem uma tal de delação que eu nunca vi, não sei nem se existe. Nem eu e nem ninguém nosso sabe.

Como foi o impacto do afastamento do cargo na sua vida pessoal?

A vida política já não é fácil. Quando você entra na política, você já é um homem que fica visado. Ainda mais num governo igual o meu, que era rígido nas contas públicas. Isso cria um desconforto, não agrada todo mundo. Você fica sujeito a essas coisas. Na verdade, moralmente não me afetou muito porque eu sei o que eu fiz. Eu, Mauro Carlesse, não mudou porque eu não fiz nada de errado. Agora, a minha família sofreu muito de eu ser acusado de ladrão, acusação de corrupção, e ser acusado sem eu saber o que eu fiz. 

Esse processo foi policial, jurídico ou político?

Político. Mas misturou tudo aí. Foi político, misturou com um processo policial e também jurídico.

Como começou a crise na segurança pública do estado?

Começou [de forma] simples, quando a gente quis melhorar o sistema de segurança pública. Não tinha nem uma linha, não existiam normas. Você pegava uma determinada área, um determinado delegado, você puxava qual era o trabalho e você via que não tinha produtividade nenhuma, era zero. Aí eu contratei um secretário que é da Polícia Federal, um cara de alto conhecimento. Eu falei: ‘Vamos implantar o mesmo sistema da Polícia Federal dentro do estado que é pra poder ter controle’. Como um governador vai investir na segurança pública do estado se você não tem nem conhecimento? Não conseguiamos ver nada. Foi quando nós implantamos. Tudo com projeto de lei para mandar para a Assembleia e depois aprovar. Foi quando uma meia dúzia de delegados se revoltou porque eles não queriam ser removidos das delegacias, queriam ser permanentes. Era o único estado do Brasil onde você não podia movimentar o delegado de uma região para outra. Só que veio o projeto de lei, aprovou e conseguiu. Aí começaram a se criar essas inimizades.

Qual foi a primeira vez que o senhor sentiu a resistência do setor de segurança pública?

Começou nas redes sociais. Os próprios delegados iam nas redes sociais, faziam vídeos. E vocês vão ver que são os mesmos três, ou quatro, ou cinco que fizeram toda essa movimentação. Diziam: ‘Ah, estão nos impedindo de fazer tal movimentação, tá impedindo…’. Já pegava e já soltava na mídia qualquer coisa que fosse relacionada ao governo, qualquer coisa. Sem prova, sem investigação, sem nada. Isso pra denegrir a imagem do governo. E eu trabalhando para que o estado do Tocantins superasse essa coisa de afastamento, essa coisa de corrupção, escândalos. Eu estava atrás de financiamento para adquirir credibilidade. Aquilo que eles estavam fazendo não estava ajudando o estado. Numa investigação, você não tem que estar publicamente falando, não. Investiga, prova e manda pra condenar. 

Naquele contexto, apareceu também uma demanda salarial e de classe?

Isso é um assunto que ocorreu, sim. Houve algumas pressões, umas coisas de ‘ou aumenta ou a gente faz isso’. Mas eu não atendia.

Palácio do Araguaia, sede do governo do Tocantins em Palmas. | Foto: Reportagem Agência Pública

Mas o senhor não relaciona isso com o que aconteceu depois?

Isso foi coisa de política. Quando aconteceu isso, os políticos que tinham interesse falaram: ‘Não, isso aqui é o começo pra gente começar um processo, mandar pra frente e ter resultado’. Não tem prova de nada, não tem nada, as acusações que tem lá, as coisas que tem ali são coisas do dia a dia de um governo que é de trabalho. ‘Ah, invadiram o Palácio.’ Não, foram no palácio uma vez buscar um documento. Porque não pediu o documento e o governo mandou? 

Como repercutiu esse episódio da entrada no palácio na sua gestão? 

Eles entraram no palácio, com armamento pesado, para buscar um documento. Uma folha de frequência. Agora, você imagina… Você acha que um palácio, a sede do governo do estado do Tocantins, pode sofrer esse tipo de coisa? Isso repercutiu muito mal. Eu estava em Brasília, na Caixa Econômica Federal, para arrumar um empréstimo de 500 ou 600 milhões de reais. E aí tava lá: ‘Palácio do Araguaia invadido pela Polícia Civil’. Uma denúncia sobre funcionários fantasmas que vinha da gestão anterior, do governo passado. Isso desmoralizava porque [era] um estado que já vinha com o governador cassado, a credibilidade é zero. 

A demanda dos policiais era exclusivamente salarial?

Era política. Tanto que um deles foi candidato. O irmão de outro foi candidato, vereador. Um outro é aliado da senadora. O outro não sei o quê. É política. Um grupo político que entrou para desmantelar o governo. 

Eles queriam um órgão próprio?

Eles queriam criar a Secretaria da Polícia Civil. O estado não comporta isso. Eu não dei muita ênfase a isso, mas era uma exigência. 

Teve um episódio em que a cúpula da segurança pública colocou os cargos à disposição?

Colocaram sim. Quando eu coloquei um secretário que era delegado e esse delegado por algum motivo saiu e todos pediram exoneração. Foi quando eu aproveitei e troquei eles de delegacia. Uma das coisas foi isso aí. Aí eu modifiquei as delegacias, fiz o que era necessário para não parar as atividades. Eu não aceitava a maneira como eles estavam trabalhando e eles entendiam que não podiam obedecer o governador nas mudanças. Não tinha governador pra eles. Eles eram superiores ao governo. Não tinha quem mandasse neles. Não tinha lei.

Houve uma espécie de batalha midiática entre o governo e esse grupo de delegados. Por exemplo, o Manual de Procedimentos foi chamado de ‘decreto da mordaça’ na imprensa. Houve uma audiência na Câmara Federal. Como você interpreta a posição dos delegados?

É política. Falar em mordaça… Vou te dar um exemplo. Você acha que é normal um delegado, antes de fazer uma investigação e apurar, sair nas redes sociais falando? Não é mordaça. Não é normal. Quem tem que falar, na minha opinião, é o secretário. O que eu preservava, na verdade, não é o Carlesse, eu queria preservar o estado. Se um deputado faz uma cagada, o estado não tem nada a ver. Mas primeiro eles botavam: ‘O Tocantins tal, tal…’. Isso eu combati. Democraticamente. Tentava falar: ‘Gente, isso aqui não tá certo’. Quando a Assembleia aprovou o fim da inamovibilidade, isso virou… Todo mundo aqui quer ficar dentro de Palmas. Nós temos 139 municípios. Tem município que não tem como atender porque o povo quer ficar em centros grandes. E eu acho que isso está errado. Eu tinha muita reclamação da Polícia Civil que chegava com um suspeito e ele ficava quatro, cinco horas na porta da delegacia esperando o delegado chegar. Não é justo. O horário de trabalho é de trabalho. Se o cara tá no plantão dele, ele tem que cumprir o plantão dele. Então tudo isso foi uma situação que eles começaram a criar birra comigo. 

Nos últimos anos, o Brasil viveu várias operações que envolveram políticos. Hoje, o senhor vê essas operações de que jeito? O senhor mudou sua visão sobre o que ocorria?

Falando de um modo geral, o que ocorreu comigo é um abuso de autoridade total. É um absurdo, um absurdo. Eu tenho endereço físico, sou um cara que estou aqui dentro [do estado], sou empresário, fui eleito pelo povo com a maioria dos votos. Disputei três eleições para poder ficar, no mesmo ano, eleito pelo povo. Não foi no tapetão que eu ganhei. Não foi na malandragem. Foi com o voto do povo. E de repente você ser afastado de uma maneira… Policial invadindo a minha casa, como se eu fosse um bandido, um traficante. Isso é muito ruim. É muito penoso. Dói demais. Olha o prejuízo que deu para o estado. De repente, você é recebido na sua casa, tava eu e minha filha de 6 anos, que tava aqui comigo. Chegam de sete a oito homens dentro da sua casa, metem o pé na porta. A diferença é muito grande. Quebraram a minha porta. Eles entraram com fuzil, com não sei o quê, com o mandado na mão e foram fuçando tudo.

O senhor já esteve com o ministro Mauro Campbell?

Nunca. Mas eu vou encontrá-lo. Como senador da República eu vou encontrar [dias depois da entrevista, Carlesse desistiu da candidatura]. Não é justo o que ele fez comigo. Só vou dizer: “Olha, não faça isso. A sua equipe tem que ler os processos”. Porque eu vou ser absolvido em todos eles. Não tem como, eu sei o que eu fiz. Eu não fiz nada que fosse assim: “Carlesse tirou proveito disso…”. Não, o contrário. Eu trabalhei 24 horas por dia para fazer o estado ser o que ele era até a data de eu sair. Agora já destruíram tudo. Já voltou a ser o que era. Voltou a bagunça toda.

O senhor acredita que há um Estado policialesco no Tocantins?

É um Estado policialesco. O que ocorreu comigo foi simplesmente uma perseguição política por coisinhas mínimas, naturais de uma administração. Meia dúzia de delegados mais um delegado da Polícia Federal entenderam que o Carlesse era o maior bandido que tem no mundo. A estrutura [da polícia] está sendo usada, ou é usada. O outro ex-governador foi afastado também, não sei os problemas dele, mas foi pelo mesmo grupo, a mesma turma, as mesmas pessoas. Você tem que tomar um cuidado muito grande. Como vai administrar um estado se você tem atrás dele pessoas que ficam mentindo, arrumando confusão, arrumando tudo quanto é tipo de situação para afastar um governador?

O senhor falou do papel do Judiciário e do STJ, mas a PGR também formalizou a denúncia. O que o senhor acha que a PGR deveria refletir sobre esse caso?

Acho que eles deveriam ler direitinho e ver que o que eles me acusaram tem um começo de uma história, mas não tem prova de nada. Não tem uma prova. Se tivesse uma prova, o Carlesse estava preso há muito tempo, porque a vontade deles é prender o Carlesse. Mas cadê a prova do que eles me acusaram? Até hoje eu não sei.

O senhor não levou essas questões ao Ministério da Justiça, ao governo?

Não, porque nunca tive a oportunidade. Nunca tive nenhum documento para fazer minha defesa. A única defesa que eu fiz, e você pode pegar nas redes sociais, foi mostrar que uma das acusações era que eu tinha colocado na minha conta R$ 200 mil em dinheiro. Como eu tenho minhas declarações de Imposto de Renda, eu mostrei dizendo que aquele dinheiro tem origem. 

Por que o senhor não procurou nenhum ministro do governo federal?

A partir daí é com os advogados… Uma semana antes o ministro [Anderson Torres, da Justiça e Segurança Pública] esteve aqui na inauguração da Cidade da Polícia.

Em nenhum momento ele te ligou depois?

Não, não. Na verdade, em nenhum momento… Foi uma coisa desesperada, chefe. Foi o golpe de Estado mais esquisito do mundo. Sabe quantos policiais vieram pra cá? Duzentos e cinquenta. Dois aviões da FAB. E o que não é normal é o ministro [do STJ, Mauro Campbell] vir…

Como o senhor interpreta essa vinda do ministro?

Já foi, já ocorreu, já foi feito o absurdo. A pergunta que eu fico, e a gente vai discutir muito futuramente, com a bênção de Deus, no Senado, é o abuso, o prejuízo que ocorre. Você tem um governador que vem fazendo todo um trabalho e ele é afastado por uma acusação que ele não consegue se defender. Ele [o ministro] poderia ter me chamado, me intimado naquele processo, eu era um governador de estado. Com todo o respeito, mas eu fui eleito pelo povo. Ele poderia ter me chamado e dito: ‘Você está sendo afastado por isso e por isso. Eu vou te afastar, mas tá aqui a documentação com base na qual eu estou te afastando’. E aí eu iria me defender e aí, de direito, eles poderiam me tirar ou não. Mas eu não tenho como defender, não tenho documento até hoje. O processo voltou para a primeira instância e, pelo que meu advogado tem dito, ele tem aguardado a documentação chegar. Só que o mandato todo dia ele vence. Todo dia é um dia a menos.

A acusação principal é que o senhor queria interferir em investigações em andamento. O senhor tomou conhecimento do que aconteceu nessas investigações?

Nunca. Nunca cheguei e falei: ‘Secretário, essa investigação aqui…’. Eu não tinha tempo para isso, não. De sentar com secretário e procurar saber da investigação de ninguém.

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