Subversão e inclusão: O impacto dos filmes de Picoli e Victor di Marco
Cineastas brasileiros desafiam estereótipos ao retratar a deficiência com sensibilidade e humor em filmes premiados
Desde o início de suas carreiras, Márcio Picoli e Victor di Marco têm se dedicado a produzir curtas-metragens que abordam questões de pessoas com deficiência, explorando temas como gênero, sexualidade e a percepção da diferença. O casal recebeu diversos prêmios por suas obras, incluindo ‘O que Pode um Corpo?’ (2020), ‘Possa Poder’ (2022), ‘Rasgão’ (2023) e ‘Zagêro’ (2024). Este último foi agraciado com os troféus de Melhor Filme, segundo o júri popular, e Melhor Ator, para di Marco, no 31° Festival de Vitória.
Em ‘Zagêro’, Victor di Marco interpreta um homem com deficiência internado em um hospital psiquiátrico, onde pessoas com deficiência (PCDs) eram frequentemente afastadas da sociedade. A narrativa do filme é uma mistura de afronta política e experimentação artística, culminando em um inesperado videoclipe.
Em entrevista ao Meio Amargo, Picoli e di Marco discutem a importância de retratar pessoas com deficiência de maneira que escape dos estereótipos de doença e tristeza. Eles ressaltam a necessidade de subverter o didatismo que muitas vezes permeia o cinema sobre deficiência e de pensar na deficiência como uma habilidade, não como algo negativo.
“Há uma pauta sobre pessoas sem deficiência, mas também estamos tirando uma onda desse cinema que se leva a sério demais”, diz Picoli. “Sabemos que precisamos de certo didatismo para abordar o tema, mas como subverter isso de forma que se transforme em uma linguagem própria? Pensar na deficiência como uma habilidade e não trazê-la como algo ruim”.
Eles ressaltam a importância de lembrar que, historicamente, pessoas com deficiência foram as primeiras a serem internadas em hospitais psiquiátricos e outras instituições. “Pouco se fala sobre como essas pessoas foram as primeiras a chegar nesses lugares”, comenta di Marco. “Se voltarmos ao nazismo, os primeiros testes foram realizados em pessoas com deficiência. Isso chega ao Brasil de uma forma que, quando não há acessibilidade nas ruas, é muito mais fácil trancar essas pessoas em instituições”.
Além disso, há a questão do estigma e da vergonha familiar em relação a ter um filho com deficiência, um tema explorado em ‘Zagêro’. “Contamos a história de como, quanto mais se fala, menos se sabe. Seja falando de questões de deficiência ou de cinema queer, a discussão estética e a prática de fazer cinema muitas vezes ficam restritas a certos grupos”, explica Picoli.
Uma das abordagens inovadoras do filme foi a decisão de resolver cada bloco de cena em um plano único, brincando com o estilo documental observacional. “Queríamos usar essa linguagem até chegar a uma catálise, como um videoclipe no meio do filme”, diz di Marco. “Talvez tenhamos maturidade suficiente para rir de nós mesmos. Estamos falando de pautas importantes e queremos transformar isso em algo que provoque risos, mas risos críticos”.
Os cineastas desejam que o público ria junto com os personagens, não deles. “No passado, personagens com nanismo, por exemplo, eram frequentemente alvo de chacota na TV. Queremos que as pessoas riam com nossos personagens, não deles”, afirma di Marco. “Queremos que o riso seja uma forma de crítica mais eficaz do que uma crítica direta”.
Picoli e di Marco acreditam que é essencial atrair mais pessoas para a luta pela inclusão e representação das pessoas com deficiência. “Embora as pessoas com deficiência representem 24% da população brasileira, não podemos lutar sozinhos. Precisamos de mais gente somando a essa luta”, destaca Picoli.
A representação de pessoas com deficiência como indivíduos felizes, com vida sexual ativa e desejos, é outro aspecto importante do trabalho dos cineastas. “Sempre apostamos que falar sobre sexo era uma forma de imaginar a deficiência de maneira positiva. Deficiência que quer transar, que fala sobre sexo, que é capaz de ser feliz”, diz di Marco. “A sigla ‘PCD’ abrange infinitas possibilidades de sexualidade, identidade de gênero, orientação sexual e raça”.
Eles também brincam com signos culturais fortes, como maquiagem e roupas íntimas, para repensar e criar outros imaginários. “Não faz mais sentido mostrar a imagem do opressor ou o sangue das pessoas retratadas. Para nós, hoje, fazer cinema é criar outros imaginários, mostrar pessoas felizes, tendo uma vida plena”, diz Picoli.
“Queremos gerar dúvidas, pegar aquela pessoa que acha que tem certeza de tudo e fazê-la questionar suas certezas”, conclui di Marco. “Quando conseguimos isso, ficamos felizes”.
O trabalho dos cineastas é um convite para repensar a deficiência e a diferença, abordando essas questões com sensibilidade, criatividade e humor. Ao transformar o cinema em uma ferramenta de inclusão e reflexão, eles abrem novos caminhos para a representação de pessoas com deficiência nas telas, promovendo uma visão mais diversa e rica da humanidade.