A arte como resistência e identidade afro-brasileira
A trajetória da pintora Maria Auxiliadora que desafiou normas estéticas e se tornou um ícone na representação da cultura negra, ganhando reconhecimento internacional cinco décadas após sua morte
Maria Auxiliadora da Silva, nascida em 15 de maio de 1938, em Campo Belo, Minas Gerais, cresceu em um ambiente familiar que valorizava profundamente a expressão criativa. Filha de uma ex-escrava e irmã de outros artistas autodidatas, ela desenvolveu desde cedo suas habilidades em desenho e bordado, incentivada pela mãe, que, embora não fosse artista, estimulava os filhos a explorarem o potencial artístico.
Aos 12 anos, a mineira precisou interromper os estudos para ajudar no sustento da família, trabalhando como bordadeira. Mais tarde, atuou como empregada doméstica, sem nunca abandonar sua paixão pela pintura. Mesmo com uma rotina de trabalho intensa, a artista dedicava suas horas vagas à criação de obras que apresentava em feiras e praças públicas de São Paulo, como as feiras de Embu das Artes e os circuitos artísticos da Praça da República. Aos 32 anos, finalmente conseguiu se dedicar exclusivamente à pintura, período em que desenvolveu uma técnica particular que se tornaria sua marca registrada: a mistura de tinta a óleo, massa plástica e fios de seu cabelo para criar relevos em suas telas. Essa inovação técnica, que resultava em obras vibrantes e texturizadas, conferiu à pintora um estilo único e reconhecível no cenário artístico.
As obras da mineira refletiam uma forte conexão com suas raízes afro-brasileiras, abordando cenas do cotidiano e festividades populares, sempre com ênfase na presença de corpos negros e na cultura afro-brasileira. Sua produção artística, distante dos padrões acadêmicos e modernistas da época, foi frequentemente classificada por críticos como autodidata, avessa às normas tradicionais. Durante o período da ditadura militar no Brasil, quando a cultura e a arte eram alvo de forte censura, a artista continuou a criar obras que desafiavam as normas estéticas vigentes. Sua arte, embora não abordasse diretamente questões políticas, já se destacava por sua representação desafiadora da cultura negra em um contexto de repressão.
Em 1973, seu trabalho alcançou reconhecimento mais amplo, com suas obras sendo incluídas na Exposição afro-brasileira de artes plásticas, realizada no Museu de Arte de São Paulo (MASP). Essa participação marcou um ponto de virada em sua carreira, solidificando sua posição no cenário artístico brasileiro. Pietro Maria Bardi, então diretor do MASP, reconheceu a relevância de suas criações e publicou um livro sobre sua trajetória em quatro idiomas. A partir desse momento, suas pinturas começaram a ser disputadas por colecionadores e a figurar em exposições tanto no Brasil quanto no exterior.
Nos últimos anos de vida, a artista enfrentou uma batalha contra o câncer, mas continuou a produzir arte, incorporando novos temas em suas obras, como a morte e figuras angelicais. Mesmo nesse período difícil, as cores vibrantes que caracterizavam seu trabalho permaneceram presentes até o fim. A mineira faleceu em 20 de agosto de 1974, aos 36 anos.
Cinco décadas após sua morte, o legado da artista continua a ser celebrado pela originalidade e pela representação da cultura afro-brasileira. Suas pinturas são reconhecidas tanto no Brasil quanto internacionalmente como uma contribuição significativa para a história da arte brasileira.
O movimento contemporâneo de resgate e valorização de figuras históricas femininas e negras, como a pintora mineira, tem ganhado força nos últimos anos. Eventos como o Festival Literário das Periferias (FLUP), realizado este ano, destacam mulheres negras que contribuíram significativamente para o desenvolvimento do pensamento antirracista e decolonial no Brasil. No caso da artista, a redescoberta de sua obra impacta diretamente as discussões atuais sobre identidade cultural e resistência.
A memória e a produção da pintora seguem sendo objeto de estudo e análise, revisitadas constantemente por pesquisadores e críticos de arte. Segundo Alecsandra Matias, a redescoberta de artistas como a mineira contribui para a renovação das poéticas e das memórias históricas, oferecendo novas perspectivas sobre o papel da arte na sociedade. Essas novas análises ajudam a resgatar histórias e presenças que, durante muito tempo, foram negligenciadas ou subestimadas pelo discurso oficial.
A pintora deixou um legado que vai além de sua produção artística. Sua história é um testemunho de como a arte pode ser uma ferramenta poderosa para a afirmação de identidades culturais e para a contestação de normas sociais. Suas obras permanecem relevantes, servindo como ponto de referência para discussões sobre a representação da cultura negra na arte e sobre o papel das mulheres negras na história do Brasil. A contribuição de Maria Auxiliadora para a arte brasileira é inquestionável e continua a ser celebrada e estudada em diferentes contextos.