Goiás se destaca na garantia do direito de “desfiliação” de maternidade biológica
Defensora pública afirma não ter encontrado casos anteriores de desfiliação materna de forma consensual e extrajudicial no Brasil
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O abandono afetivo, assunto cada vez mais discutido no direito de família brasileiro, representa uma forma de negligência que pode comprometer profundamente o bem-estar emocional de uma criança. Mais do que a simples ausência física, ele envolve a falta de cuidado, atenção e suporte emocional por parte de um dos pais, prejudicando a construção da identidade e da autoestima dos filhos.
O afeto e a presença ativa na vida da criança são essenciais para seu desenvolvimento saudável, pois fornecem segurança emocional e contribuem para a formação de relações interpessoais equilibradas.
Nos últimos anos, a jurisprudência brasileira tem avançado no reconhecimento dos impactos negativos do abandono, considerando suas consequências para o desenvolvimento psicológico dos filhos. Estudos apontam que a ausência de vínculo afetivo pode desencadear dificuldades emocionais e comportamentais que se estendem até a vida adulta, influenciando na forma como a pessoa se relaciona com os outros e lida com desafios emocionais.
Diante disso, cresce a necessidade de conscientização sobre a importância da responsabilidade afetiva dos pais, reforçando que o dever de cuidar vai além das obrigações materiais e jurídicas.
Recentemente, a Defensoria Pública do Estado de Goiás (DPE-GO) garantiu a uma moradora do estado o direito de remover o nome da mãe biológica de seus documentos e oficializar a maternidade socioafetiva com a tia materna que a criou. O caso, resolvido de forma extrajudicial e consensual, marca um avanço significativo no reconhecimento da parentalidade baseada no afeto.
A homologação foi feita pela Vara de Família e Sucessões de Valparaíso de Goiás, após um processo de mediação conduzido remotamente pela Defensoria Pública. A defensora pública Jéssica Santos Ângelo, responsável pelo caso, afirmou não ter encontrado precedentes de desfiliação materna de forma consensual e extrajudicial no Brasil.
“Acredito que tenha sido o primeiro caso resolvido sem a necessidade de um processo judicial contencioso, com a homologação do termo de entendimento entre as partes”, afirmou.
A moradora que teve seu direito garantido, Raissa Cristina Serra Costa, foi criada por sua tia materna, Valderez Serra Costa. Desde cedo, ela reconhecia Valderez como sua verdadeira mãe, pois esta assumiu sua criação desde a infância, enquanto sua genitora biológica se manteve distante.
A tia, diagnosticada com câncer no ovário aos 20 anos, não pôde ter filhos biológicos e dedicou-se integralmente à criança. Entretanto, o vínculo entre ambas nunca havia sido formalizado. Aos quatro anos, Raíssa permaneceu temporariamente sob os cuidados da avó materna, enquanto Valderez providenciava sua documentação para levá-la à Espanha.
Ao ingressar na escola, precisou ser registrada pela genitora biológica, embora a guarda definitiva tenha sido concedida posteriormente à tia, que a levou para a Espanha, onde viveram juntas até sua maioridade. “Meu relacionamento com minha mãe biológica era nulo. Sabia quem era ela pois é irmã da minha mãe, porém nunca tive contato telefônico e muito menos pessoal, já que eu morava fora do país”, conta Raíssa.
O desejo de formalizar a maternidade socioafetiva surgiu com o nascimento de seu primeiro filho. Ao perceber a tristeza de Valderez por não constar como avó nos documentos da criança, a jovem decidiu buscar a regularização da relação oficial. “Me deixava bastante triste carregar o nome de alguém que nem sequer eu sabia quem era”, relata.
A defensora pública explica que, ao contrário do processo de adoção tradicional, o reconhecimento pode ocorrer tanto judicialmente quanto extrajudicialmente. No caso de Raíssa, a ausência de vínculos emocionais com a genitora biológica permitiu a exclusão de seu nome do registro civil, sem a necessidade de um processo de adoção convencional.
O juízo considerou a regularidade do ato e homologou o pedido com base no artigo 487, inciso III, “b”, do Código de Processo Civil. “Depois de 29 anos, poder carregar o nome da pessoa que até hoje faz o possível e impossível por mim, ver ela chorar no momento que mostrei os meus documentos e os documentos dos meus filhos foi uma cena que não tem preço. Agora, sim, é legítimo: sou filha e eles são netos”, comemora.
Para a defensora pública, “trata-se de uma quebra de paradigma, notadamente da ‘cultura da sentença’ para uma ‘cultura da pacificação’ que possibilita a busca pelo diálogo e a promoção do protagonismo popular.