Seis décadas de ficção e um rosto que atravessou gerações
Francisco Cuoco morreu na última quinta-feira (19), aos 91 anos, e foi protagonista de personagens que ajudaram a definir a telenovela brasileira
Francisco Cuoco morreu na última quinta-feira (19), aos 91 anos, em São Paulo. Estava internado no Hospital Albert Einstein havia cerca de vinte dias, enfrentando complicações de saúde associadas à idade avançada. O corpo foi velado na última sexta-feira (20), no Funeral Home da Bela Vista, em cerimônia aberta ao público. O sepultamento ocorreu no mesmo dia, em ato restrito a familiares e amigos.
Filho de um feirante, nascido no Brás em 1933, Cuoco abandonou o curso de Direito para estudar na Escola de Arte Dramática da USP. No teatro, deu os primeiros passos sob direção de nomes como Ademar Guerra e Gianni Ratto. O início da carreira se deu no TBC e, em 1961, ganhou projeção ao atuar ao lado de Fernanda Montenegro na montagem de O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues. Foi o início de uma trajetória marcada por intensidade e versatilidade.
A televisão o tornaria conhecido em todo o país. Estreou no Grande Teatro Tupi e logo integrou o elenco de novelas da Record e da Excelsior. Foi em Redenção (1966), na TV Excelsior, que passou a ser identificado como galã — estereótipo que acompanharia parte significativa de sua trajetória. Em 1970, estreou na TV Globo, onde construiria os papéis mais célebres da carreira.
Na emissora, sua presença moldou a linguagem das novelas em uma época de redefinição estética do gênero. Em Selva de Pedra (1972), foi Cristiano Vilhena, empresário dividido entre ambição e paixão, na obra de Janete Clair e Daniel Filho que atingiu 100% de audiência em alguns estados. Em O Semideus (1973), assumiu o papel de Hugo Leonardo, jornalista envolvido em uma trama política de suspense. No ano seguinte, em Cuca Legal, exibiu sua veia cômica como o psicanalista Pedro Ernesto, sob texto de Marcos Rey.
Foi em Pecado Capital (1975), porém, que seu talento encontrou um dos papéis mais memoráveis. No papel de Carlão, taxista que se depara com uma mala de dinheiro após um assalto, Cuoco compôs um tipo popular, ambíguo, que representava as contradições morais da classe média urbana. A parceria com Janete Clair se repetiria em O Astro (1977), onde viveu Herculano Quintanilha, um ilusionista que assume ares de vidente e mobiliza o país. A novela foi um marco de audiência e levou o autor Carlos Drummond de Andrade a escrever que, com o fim da trama, era hora de “voltar à vida real”.
Cuoco também esteve no elenco de O Sétimo Sentido (1982), A Próxima Vítima (1995), Torre de Babel (1998), Celebridade (2003), Alma Gêmea (2005), Ti Ti Ti (2010) e Salve-se Quem Puder (2020), sua última novela. Atuou em mais de 40 produções televisivas, consolidando-se como um dos rostos mais conhecidos da dramaturgia brasileira. Sua atuação aliava sobriedade, elegância e domínio técnico. Dominava o tempo de cena e oscilava com naturalidade entre personagens trágicos e farsescos.
No cinema, participou de obras como Traição (1998), Gêmeas (1999), A Partilha (2001), Cafundó (2005) e Um Anjo Trapalhão (2000). No teatro, esteve em dezenas de montagens, sempre alternando entre os clássicos e a comédia popular.
Na última década, o ator atuou com menor frequência. Afastado dos palcos por questões de saúde, passou a viver com a irmã Grácia, de 86 anos, em um apartamento na zona sul de São Paulo. Em entrevista concedida no mês anterior à sua morte, relatou dificuldades de locomoção, uso de sonda nasal e desinteresse pelas novelas atuais. “Assisto ao jornal, alguma reportagem mais interessante. Mas perdi o interesse em novelas. Vejo filmes. Mas nem sempre, porque são muito longos”, afirmou à Folha.
Ainda assim, emocionou-se ao voltar a gravar, em 2023, uma participação especial no humorístico No Corre, do canal Multishow. A última homenagem em vida foi no programa Tributo, da Globo, exibido no início de junho. A emissora suspendeu a programação da última quinta-feira para reprisar o especial em sua memória.
Entre as manifestações de pesar, a de Fernanda Montenegro se destacou. Em uma publicação em rede social, a atriz lamentou a partida do amigo com quem dividiu palcos e telas desde 1958. “Querido, tão querido amigo Cuoco. Seguimos juntos em muitas encenações”, escreveu. “Francisco Cuoco é um ator absoluto. Um querido e amado ser humano.”
Reconhecido por colegas e pelo público como referência artística, Cuoco foi um dos poucos profissionais da emissora a manter contrato vitalício. Recebeu os principais prêmios da televisão brasileira, como Troféu Imprensa, APCA e Arte Qualidade Brasil.
Com sua morte, encerra-se um capítulo da televisão brasileira. Não apenas pelo fim de uma carreira extensa, mas pela ausência de um intérprete que moldou arquétipos e ampliou os horizontes dramáticos do gênero. Ao longo de seis décadas, o ator atravessou épocas, estilos e formatos, sempre com a mesma entrega silenciosa, feita de gestos contidos, olhares longos e falas marcantes.
Francisco Cuoco deixa três filhos — Tatiana, Rodrigo e Diogo —, netos, amigos e um público que o acompanhou por toda a vida. Mas deixa, sobretudo, uma galeria de personagens que continuam vivos na memória coletiva de um país que aprendeu a se reconhecer nas tramas que ele ajudou a construir.