Adeus, Preta
Filha de Gilberto Gil, a artista consolidou uma carreira marcada por autenticidade, ativismo e enfrentamento público ao câncer. Morreu no último domingo (20), aos 50 anos, em Nova York
No último domingo (20), a cantora, empresária e apresentadora Preta Gil morreu aos 50 anos, em Nova York, em decorrência de complicações provocadas por um câncer colorretal. O tratamento experimental que realizava nos Estados Unidos havia se tornado a última etapa de um enfrentamento iniciado em janeiro de 2023, quando recebeu o diagnóstico do tumor. Durante todo o processo, ela manteve a exposição pública da doença como uma escolha consciente, sem retórica triunfalista, nem apelo à piedade. A transparência com que relatou o avanço da metástase, os efeitos da quimioterapia e as sucessivas cirurgias moldaram uma narrativa inédita no espaço ocupado por celebridades brasileiras.
Filha de Gilberto Gil, Preta Maria Gadelha Gil Moreira nasceu no Rio de Janeiro em 1974. Cresceu entre ensaios, bastidores e palcos, mas construiu sua carreira em outra direção. Começou como assistente de direção em novelas, trabalhou com produção de videoclipes e só assumiu o protagonismo artístico em 2003, ao lançar o álbum Prêt-à-Porter. O trabalho foi mais comentado pelo encarte, em que aparecia nua, de frente e de costas, do que pelas faixas. O desconforto gerado pela imagem antecipava a postura que ela adotaria nos anos seguintes: a recusa em se adaptar às expectativas que o meio cultural lhe impunha como mulher preta, gorda, bissexual e herdeira de um nome consagrado.
Ao longo de duas décadas, a artista criou um espaço próprio na indústria do entretenimento. Gravou seis discos, comandou programas de televisão, atuou em novelas e, principalmente, fundou o Bloco da Preta, um dos maiores do carnaval do Rio de Janeiro. Em paralelo, se destacou como empresária ao criar, em 2017, uma agência de marketing de influência voltada para a diversidade, a Mynd. As campanhas publicitárias que desenvolveu com grandes marcas abriram caminho para outros perfis fora do padrão dominante na publicidade nacional. Sua presença como figura pública era inseparável de uma dimensão política: não havia entrevista, projeto ou evento em que deixasse de tensionar os discursos sobre corpo, identidade e pertencimento.
Em janeiro de 2023, foi diagnosticada com adenocarcinoma no intestino. Iniciou quimioterapia e, em agosto do mesmo ano, passou por uma cirurgia de grande porte para remoção do tumor, além da retirada de parte do útero. No fim de 2023, após internações frequentes e a instalação de uma ileostomia, conseguiu retomar parte da rotina profissional. Mas em agosto de 2024, exames detectaram metástase no peritônio e em linfonodos. A nova cirurgia, realizada em dezembro, durou 21 horas. Em janeiro de 2025, ela passou a conviver com uma colostomia permanente.
Durante esse período, em uma das internações mais delicadas, Preta contou com o apoio direto do pai. Em entrevista concedida ao programa Conversa com Bial e registrada em sua autobiografia, Os Primeiros 50, ela relatou uma chamada de vídeo que marcou sua permanência na UTI. Do outro lado da tela, Gilberto Gil disse: “Filha, a natureza é sábia. Somos parte dela. Voltamos pra ela. Isso faz parte da vida”. Diante da gravidade do quadro, o pai completou: “Se tiver muito difícil pra você, e se for sua hora, aceite”. Preta descreveu aquele momento como libertador. Não pela desistência, mas pela permissão de parar de lutar se o corpo não conseguisse mais.
Com as alternativas clínicas esgotadas no Brasil, Preta seguiu para Nova York em maio, onde iniciou tratamento experimental em uma das principais instituições de pesquisa oncológica do país, o Memorial Sloan Kettering Cancer Center. A abordagem incluía terapias-alvo, imunoterapia e protocolos baseados em células CAR-T. O quadro se agravou nas últimas semanas, e a morte foi confirmada na tarde de domingo. Ao seu lado, estavam familiares e amigos próximos.
O pai, Gilberto Gil, acompanhou todo o processo de forma discreta, mas constante. Em junho, quando completou 83 anos, passou a data ao lado da filha nos Estados Unidos. O vínculo entre os dois ia além da paternidade. Compartilhavam a música como ofício, mas também a compreensão de que o palco, no Brasil, é uma arena política. Gil construiu sua carreira sob a ditadura; Preta, sob o juízo da indústria cultural e da vigilância social dos corpos dissidentes. Ambos entenderam o tempo em que viveram, e ambos enfrentaram as violências simbólicas e institucionais que os tempos lhes impuseram.
Preta deixa um filho, Francisco, integrante da banda Gilsons, e uma neta, Sol. Deixa também um legado que não se resume à discografia, aos blocos carnavalescos ou às campanhas publicitárias. Sua contribuição está na forma como usou a própria imagem para deslocar os limites do que se espera de uma artista popular no Brasil. Tornou visível o que a indústria costumava esconder. E, até o fim, sustentou essa escolha com lucidez.
Sua morte interrompe uma trajetória, mas não dissolve o campo simbólico que ela ajudou a construir. As imagens que compartilhou durante o tratamento, os relatos sobre a dor, as adaptações corporais e os limites da medicina reposicionaram o debate público sobre o câncer. E sua presença na cultura brasileira, desde a estreia provocadora até os últimos meses de resistência, continua como registro de uma artista que preferiu incomodar a desaparecer.