“Tentaram derrubar minha casa comigo dentro”, relata moradora de ocupação no Estrela Dalva
Comunidade denuncia ações da prefeitura sem aviso prévio, com demolições de construções habitadas e ausência de alternativas dignas para mais de 100 famílias
Eduarda Leite & Micael Silva
Moradores de uma ocupação no Setor Estrela Dalva, em Goiânia, vivem dias de medo, insegurança e incerteza. A comunidade, formada majoritariamente por trabalhadores em situação de vulnerabilidade, denuncia ações recentes da prefeitura que resultaram na demolição de muros e construções em andamento, algumas com pessoas ainda dentro das moradias.
As intervenções teriam ocorrido em cumprimento de uma decisão judicial, segundo a administração municipal, que afirmou que os alvos seriam apenas imóveis não habitados. No entanto, relatos de moradores apontam que não houve aviso prévio e que estruturas foram derrubadas com moradores presentes nos terrenos.
“Tentaram derrubar minha casa comigo dentro. Eu estava construindo ela e morando numa barraca no fundo do mesmo lote, e o fiscal falou que se não tivesse ninguém morando, iriam derrubar. A população se juntou e carregou todos os meus móveis lá pra frente, e agora eu estou morando aqui antes de terminar de fazer”, contou uma moradora de 67 anos, que vive na ocupação há quatro anos e sustenta a casa com reciclagem.
Mesmo com a incerteza cercando seu futuro, a idosa continua batalhando por sua moradia. “Eu vou catar reciclagem para construir minha casa, porque quando eu morrer, meus filhos vão olhar para cada tijolo desse e lembrar que eles estão aqui por conta do meu trabalho”, compartilha a moradora.
“A gente quer pagar água, luz, IPTU. Isso é lucro pra prefeitura. Somos gente honesta querendo viver em paz”, continua a moradora. Segundo os relatos, a região abriga mais de 100 famílias atualmente.
Denúncias afetam a comunidade
A área ocupada é vizinha a uma mata considerada de preservação ambiental. De acordo com os moradores, ações criminosas ocorrem dentro da mata, o que levou a líder comunitária local a sofrer ameaças e se afastar fisicamente da comunidade. “Ela teve que sair daqui porque estava sendo ameaçada. Não por autoridades, mas por pessoas que não querem a regularização da área, porque isso atrapalha os interesses delas”, afirmou um dos moradores mais antigos da ocupação.
A organização da associação de moradores da comunidade, a Associação Comunitária Estrela Dalva, tenta intermediar a regularização fundiária do espaço. “Desde o início, já tivemos várias ordens de despejo, e tentamos mediar a situação. Porém, dessas últimas vezes, não tive nenhum comunicado prévio falando que teria alguma ação”, explica uma representante do órgão. A associação conta que solicitou às autoridades um aviso prévio, para que, em caso de ação, a Defensoria Pública, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e o Conselho Tutelar sejam informados.
“O processo está aberto desde o ano passado para decidir se haverá a regularização da comunidade ou se os moradores serão realocados. A discussão cessou com o fim da gestão municipal passada, mas reacendeu com uma visita que ocorreu no dia 02 de julho”, explica a organização.
Segundo a representante, as visitas das autoridades têm ocorrido sob a justificativa de controlar as ações criminosas que ocorrem na mata vizinha. Porém, os moradores da comunidade relatam que estão sendo confundidos com esses criminosos. “Nós da comunidade estávamos fazendo denúncias sobre a atividade na mata, para tentar ajudar, mas a população dos bairros vizinhos nos denúncia como se fossemos criminosos também”, explica uma representante da associação de moradores.
Durante os relatos, moradores também mencionaram a presença de agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) em ações que teriam ocorrido sem mandado judicial apresentado no local. “Eles chegaram com as máquinas e foram derrubando. O fiscal foi desaforado com todo mundo. O advogado pediu pra ver a ordem, mas disseram que iam derrubar de qualquer jeito”, contou um dos entrevistados.
“Somos a favor das autoridades virem e fazer o trabalho, mas com aviso, da maneira certa, para que possamos acionar os órgãos que protegem nossos direitos”, declara a Associação Comunitária Estrela Dalva em entrevista ao O HOJE.

Promessas vazias
Os relatos também lembram promessas feitas em período eleitoral, quando representantes públicos teriam se comprometido a regularizar a área. “Vieram aqui, entraram na casa de uma moradora, prometeram que ela poderia construir, e que se ele fosse eleito iria ajudar a regularizar. Mas não foi isso que aconteceu, tentaram derrubar a casa dela”, disse outro morador, referindo-se à idosa que trabalha com reciclagem.
Segundo a comunidade, parte dos impactos das demolições também está no emocional dos moradores. “A gente fica com medo de comprar uma tábua, um tijolo. Aí não arruma a barraca, fica todo mundo desanimado”, relatou uma diarista, moradora do local.
Outros moradores apontam que houve falta de critério na escolha das casas a serem demolidas, atingindo inclusive construções mais antigas ou quase prontas para habitação. “Tem gente aqui com quatro anos morando. Filho na escola, na creche, trabalhando aqui perto. Aí querem mandar a gente pra longe, onde não tem estrutura. Por quê?”, questionou um dos habitantes, trabalhador da construção civil.
A Defensoria Pública do Estado de Goiás ajuizou uma ação civil pública para suspender qualquer tentativa de remoção das famílias da Ocupação Estrela Dalva sem que fossem respeitados critérios mínimos de dignidade e proteção social. A instituição afirmou à Justiça que parte das demolições anteriores ocorreu sem respaldo judicial e sem qualquer planejamento social, contrariando decisões do Supremo Tribunal Federal e recomendações do Conselho Nacional de Justiça.
Segundo a ação, não foi apresentado à Defensoria o levantamento socioeconômico das famílias, nem alternativas de realocação digna. “Não se tem notícia se a municipalidade realizou levantamento das famílias. […] Tão longe se manifestou sobre possibilidade de realocação”, diz o documento. A petição ainda destaca a presença de crianças, idosos e trabalhadores que vivem no local há anos, e alega risco de violações a direitos humanos caso novas remoções sejam feitas nos moldes anteriores.
Audiência discute soluções para famílias que moram no bairro
O prefeito de Goiânia, Sandro Mabel, recentemente participou de uma audiência pública com mais de 80 moradores da Ocupação Estrela Dalva, na região Noroeste da Capital. O objetivo do encontro foi abrir um canal direto de diálogo com a comunidade, ouvir demandas e construir soluções viáveis, dentro da legalidade, para a situação fundiária da área.
Acompanhado do secretário municipal de Eficiência, Fernando Peternella, o prefeito explicou que, por se tratar de uma ocupação iniciada após 2017, os moradores não se enquadram nos critérios do Programa de Regularização Fundiária Urbana (Reurb), o que inviabiliza a regularização automática da área. Por isso, segundo Mabel, será necessário analisar cada caso individualmente, com apoio de diversas secretarias.
“Estamos aqui para dialogar e buscar soluções que respeitem as pessoas e a cidade. É uma situação complexa, que exige responsabilidade técnica, jurídica e social. Não há espaço para improviso, mas sim para planejamento e compromisso com a lei”, afirmou o prefeito.
Mabel também destacou que a prefeitura trabalha para reorganizar a cidade e garantir que ações de urbanização estejam em conformidade com a legislação. “Nossa gestão está empenhada em reestruturar Goiânia, abandonada por muitos anos em várias áreas”, acrescentou.
A última ação, realizada no dia 25 de julho, teve como foco exclusivo a remoção de cercas, muros e construções não habitadas, além de barracas de lona instaladas em área de preservação ambiental. Segundo a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano e Habitação (Seplan), a operação seguiu rigorosamente a decisão judicial vigente e foi previamente informada aos moradores durante a audiência pública com o prefeito.
Ainda de acordo com a pasta, nenhuma casa habitada foi atingida. A ação contou com o apoio da Defensoria Pública do Estado de Goiás e da Secretaria Municipal de Assistência Social.