Violência contra povos indígenas cresce sob marco legal que restringe direitos
Relatório do Cimi aponta aumento de assassinatos, suicídios e omissões do Estado após promulgação da Lei 14.701/2023, que instituiu o Marco Temporal e aprofundou conflitos fundiários
A promulgação da Lei 14.701, que instituiu o Marco Temporal em 2023, consolidou um marco regressivo na política indigenista brasileira. Ao restringir a demarcação de terras às áreas ocupadas até 5 de outubro de 1988, a norma contrariou decisão do Supremo Tribunal Federal e provocou uma explosão de conflitos no campo. O resultado, segundo o relatório anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), foi uma escalada de violência, omissão institucional e retrocessos civilizatórios.
Os dados revelam que, mesmo com ligeira queda nos registros de violência patrimonial, houve crescimento nas agressões contra pessoas indígenas. Foram contabilizados 424 episódios, incluindo 211 assassinatos e 208 suicídios, a maioria entre jovens de 10 a 29 anos. Roraima, Amazonas, Mato Grosso do Sul e Bahia concentraram os homicídios, com destaque para o assassinato de Nega Pataxó Hã-Hã-Hãe em janeiro e de Neri Ramos da Silva em setembro.
O Estado brasileiro se manteve ausente em áreas críticas. Das 857 terras com processos pendentes, 555 seguem sem qualquer providência. Invasões atingiram inclusive terras homologadas. Sessenta e um por cento dos ataques ocorreram em áreas já reconhecidas. Ao todo, foram registradas 230 invasões, 154 conflitos territoriais e 48 queimadas em 2024. A violência atingiu também povos isolados. Entre os 119 registros na Amazônia Legal, 37 não contam com nenhuma medida protetiva.
As mortes por causas evitáveis se mantêm. O Cimi documentou 922 óbitos de crianças indígenas com menos de cinco anos, em grande parte por doenças tratáveis. A desnutrição, a ausência de saneamento e a precariedade dos serviços de saúde agravam o cenário. A soma de negligência institucional e avanço de atividades ilegais, como o garimpo, o desmatamento e o uso de agrotóxicos, compromete a sobrevivência física e simbólica dos povos originários.
A crise climática acentuou os danos. Comunidades no Norte enfrentaram queimadas severas, enquanto enchentes devastaram regiões no Sul. A Terra Indígena Sararé, no Mato Grosso, viu a expansão acelerada do garimpo, e no Maranhão, o agronegócio pressionou territórios demarcados. Dos 78 conflitos fundiários em curso, dois terços atingem áreas sem regularização.
A lentidão da política indigenista foi acompanhada de decisões contraditórias. O governo homologou cinco terras, publicou onze portarias declaratórias e instalou dezesseis grupos técnicos. Contudo, a criação de uma câmara de conciliação pelo STF, com possibilidade de rediscutir decisões já consolidadas, gerou insegurança adicional, conforme apontam analistas do Cimi.
Casos de racismo institucional permaneceram frequentes. Houve denúncias de discriminação em hospitais e serviços públicos, reiterando estigmas coloniais. O relatório atualiza a plataforma Cartografia dos Ataques Contra Indígenas (CACI)que mapeia desde 1985 mais de 1.525 assassinatos de indígenas. A sigla, que significa dor em guarani, é também diagnóstico de uma política estatal incapaz de garantir proteção.
Ao fim de 2024, o que se constatou foi um ciclo de retrocesso. A vigência do Marco Temporal estimulou invasores, enfraqueceu garantias constitucionais e aprofundou um estado de emergência humanitária. O custo dessa agenda não se mede apenas em hectares perdidos, mas em vidas interrompidas, culturas ameaçadas e direitos sistematicamente desrespeitados.