Nome na certidão, ausência na vida
Mesmo com avanços no reconhecimento civil, ausência paterna permanece como realidade cotidiana para milhares de crianças brasileiras
O nome do pai pode constar na certidão de nascimento, mas, para milhares de crianças brasileiras, essa presença documental não se traduz em responsabilidade concreta. Ele não comparece à escola, ao posto de saúde, tampouco às reuniões familiares. Em muitos casos, o nome sequer existe no registro. Em 2023, mais de 172 mil crianças foram registradas apenas com o nome da mãe, segundo dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). O número equivale a 6,9% dos nascimentos no país. Desde 2016, mais de 1,2 milhão de recém-nascidos foram registrados sem qualquer identificação paterna.
Em Goiás, a ausência formal revela a extensão do problema. Entre janeiro e maio de 2025, 2.190 crianças nasceram sem o nome do pai na certidão de nascimento, conforme o Portal da Transparência do Registro Civil. Nos últimos cinco anos, o estado soma mais de 42 mil registros exclusivamente maternos. Em nível nacional, esse número ultrapassa 65 mil desde 2020. Para Bruno Quintiliano, conselheiro da Arpen-GO e vice-presidente da Arpen Brasil, “o registro civil é a porta de entrada para a cidadania. Ter o nome do pai ali não é apenas um direito da criança, é também uma forma de garantir vínculos afetivos e responsabilidades legais que impactam diretamente no desenvolvimento pessoal e social do indivíduo”, afirma.
Apesar de avanços legislativos e procedimentos facilitados, os dados indicam que as ferramentas disponíveis não têm sido suficientes. “Temos as ferramentas, os procedimentos e a vontade de resolver essas lacunas. Mas é preciso sensibilizar a sociedade, promover campanhas e mostrar que não se trata apenas de um nome no papel, mas de dignidade e pertencimento”, completa Quintiliano.
Cotidiano sem pai
A legislação brasileira garante à criança o direito à convivência familiar e à assistência moral e material por parte de ambos os pais. O Estatuto da Criança e do Adolescente define o poder familiar como compartilhado e intransferível. Ainda assim, o abandono parental raramente é punido com o mesmo rigor de outras formas de negligência. Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou o programa Pai Presente, que permite o reconhecimento formal da paternidade, inclusive com testes de DNA gratuitos. Apesar da criação de uma política pública específica, os efeitos concretos ainda são limitados. O reconhecimento judicial não assegura, por si só, a participação ativa na vida da criança.
Segundo o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), filhos sem vínculo paterno estão mais suscetíveis à evasão escolar, dificuldades cognitivas, instabilidade emocional e maior vulnerabilidade social. Um estudo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, revelou que mesmo pais formalmente registrados e presentes fisicamente mantêm um envolvimento superficial com os filhos. A figura do pai, em grande parte dos casos, permanece associada à noção de provedor distante, e não à de cuidador cotidiano.
Entre a formalização e o afeto
A ausência de vínculo biológico não impede o reconhecimento de uma relação parental. Os cartórios brasileiros passaram a registrar também as chamadas filiações socioafetivas, em que o vínculo se estabelece pela convivência e pelo cuidado. “Hoje, o reconhecimento socioafetivo é respaldado por lei e pode ser realizado extrajudicialmente, diretamente nos cartórios, desde que haja concordância de ambas as partes. É um importante passo para reconhecer famílias reais, que existem na prática do cotidiano”, afirma Quintiliano.
O procedimento é regulamentado pelo Provimento nº 63/2017 do CNJ. Para reconhecer espontaneamente a paternidade biológica, o pai deve comparecer ao cartório com documento oficial e a certidão de nascimento da criança. A mãe pode participar ou autorizar por escrito. No caso de vínculos socioafetivos, é necessário apresentar documentos e testemunhos que comprovem a convivência. Ambas as partes devem expressar formalmente o consentimento.
No dia 16 de agosto, a Defensoria Pública do Estado de Goiás realiza o mutirão “Meu Pai Tem Nome”, com atendimentos presenciais e virtuais. A campanha busca ampliar o acesso ao reconhecimento de paternidade ou maternidade, inclusive em casos em que o genitor já faleceu. “Nosso desejo é que haja tempo hábil para que os interessados apresentem os documentos solicitados e que possamos dar os encaminhamentos necessários. Queremos que o Dia D possa ser um momento de celebração dessas famílias”, afirma Bruno Malta, defensor público e coordenador estadual da iniciativa.
O mutirão acontece em oito cidades goianas, entre elas Goiânia, Aparecida de Goiânia e Anápolis. O reconhecimento formal garante também o acesso a pensão alimentícia, inclusão em planos de saúde, direitos sucessórios e benefícios assistenciais. “Trata-se de um movimento nacional de valorização da identidade e da dignidade humana. O mutirão simboliza um gesto de acolhimento e reconstrução de histórias. Ter um pai reconhecido não é apenas um dado civil, é um pedaço essencial da trajetória de qualquer pessoa”, conclui Quintiliano.
Mas a persistência da omissão paterna exige mais do que procedimentos jurídicos ou ações pontuais. Exige a revisão de um modelo cultural e institucional que, historicamente, permitiu que homens fossem pais apenas no pape. A cada dia, milhares de mães seguem sozinhas, não por escolha, mas por abandono. Os filhos crescem com lacunas emocionais que não deveriam existir. O país segue empurrando o futuro para os braços exaustos de mulheres que não conseguem descansar. E os pais, com nome na certidão ou sem ele, continuam ausentes no que mais importa: o cotidiano.