Marsha P. Johnson, 80 anos
Três décadas após sua morte sem respostas, seu nome segue como bandeira contra a violência e a exclusão de pessoas trans
No último domingo (24), Marsha P. Johnson completaria oitenta anos. A efeméride não cabe em tributo oficial, nem se resolve em calendário. Marsha é lembrada em murais coloridos no Brooklyn, em documentários no streaming, em livros que tentam narrar uma vida difícil de fixar. Mas a data, quando chega, não se limita à celebração: devolve a pergunta sobre o que mudou desde que seu corpo foi encontrado boiando no rio Hudson, em julho de 1992.
A morte, nunca esclarecida, foi registrada pela polícia como suicídio. Os amigos denunciaram assassinato, apontando hematomas na cabeça, sinais de agressão. Três décadas depois, não há resposta. O que permanece é a imagem: uma travesti negra, pobre, retirada da água, depois de uma vida inteira de embates com a violência policial, a miséria e o preconceito.
O batismo de um nome
Antes de ser Marsha, era Malcolm Michaels Jr., nascida em 1945, filha de uma empregada doméstica e de um operário em Elizabeth, Nova Jersey. Gostava de vestidos ainda criança, mas cresceu sob repressão. Aos treze anos foi violentada, aos dezoito deixou a cidade. Levava quinze dólares no bolso e uma sacola de roupas. Em Nova York, escolheu para si o nome que se tornaria ícone. “Marsha” surgiu por acaso; o “P.” virou Pay it no mind — não dê importância; “Johnson” veio de uma placa de restaurante barato onde conseguia comer.
Com o novo nome, construiu uma persona pública extravagante e frágil. Desfilava coroas de flores plásticas, improvisava figurinos com restos de tecido, atuava em trupes de teatro drag como os Hot Peaches e os Angels of Light. Andy Warhol a incluiu em 1975 na série Ladies and Gentlemen. Era celebrada e esquecida na mesma proporção: musa da contracultura em um dia, indigente no outro.
A prefeita da Christopher Street
Marsha era presença constante no Greenwich Village, especialmente na Christopher Street, onde ganhou o apelido de “prefeita”. O título, simbólico, explicava sua função: dividir comida, oferecer um casaco, escutar quem chegava. Jovens gays e trans expulsos de casa encontraram nela uma referência, mesmo que sua própria vida fosse marcada pela instabilidade.
Com Sylvia Rivera, fundou em 1970 a STAR — Street Transvestite Action Revolutionaries. O grupo começou em um trailer abandonado e depois ocupou uma casa no Lower East Side. Ali, adolescentes em situação de rua recebiam abrigo, comida, proteção. Não havia verba nem apoio institucional: a revolução era feita com panela de arroz, colchão no chão, improviso.
A noite que virou história
Na madrugada de 28 de junho de 1969, a polícia de Nova Iorque invadiu o Stonewall Inn, bar no Greenwich Village frequentado por pessoas LGBTQIA+. O roteiro era conhecido: prisões arbitrárias, humilhações, agressões físicas. Naquela noite, porém, a reação rompeu o ciclo. Frequentadores se revoltaram, enfrentaram os cassetetes, lançaram garrafas, pedras, improvisaram barricadas. O que começou como mais uma batida transformou-se em seis dias de protestos que mudariam a história. Travestis, drag queens, lésbicas e gays ocuparam as ruas, convertendo a violência em levante.
As versões divergem sobre o papel de Marsha: alguns dizem que ela atirou o primeiro copo contra um espelho; ela própria afirmava ter chegado quando o tumulto já havia começado. A verdade é que esteve lá, resistindo entre aqueles que se recusaram a dispersar. Daquela noite nasceram organizações como a Gay Liberation Front e a Gay Activists Alliance, que colocaram a libertação homossexual no centro da agenda política americana. Um ano depois, em junho de 1970, a data foi lembrada com a primeira Marcha do Orgulho, realizada em Nova Iorque, Los Angeles e Chicago, gesto que inaugurou o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, lembrando até hoje em 28 de junho em centenas de cidades pelo mundo.
Oito décadas depois
Em 2016, foi criado o Instituto Marsha P. Johnson, dedicado à defesa de pessoas trans negras. Em 2019, Nova York anunciou um monumento em sua homenagem e de Sylvia Rivera, o primeiro espaço público da cidade dedicado a mulheres trans. Documentários como Pay It No Mind (2012) e The Death and Life of Marsha P. Johnson (2017) ampliaram sua presença pública. Hoje, seu rosto aparece em murais, cartazes e marchas.
Mas lembrar de Marsha em 2025, quando completaria oitenta anos, não é apenas homenagem. É convocação. Nos Estados Unidos, avança uma onda de legislações anti-trans que restringem acesso à saúde, à educação e ao espaço público. No Brasil, a cada ano, renova-se a estatística de país que mais mata pessoas trans. Em ambos os países, a precariedade do cotidiano, emprego, moradia, proteção legal, segue sendo a regra. Oitenta anos depois, a memória de Marsha não se acomoda em monumento: continua a apontar para um presente que ainda lhe deve direitos.