Ministro determina que STF se envolva até em obras municipais
Flávio Dino, que foi eleito pelo PCdoB do Maranhão, mandou que os Tribunais de Contas, formados por políticos, fiquem de olhos bem abertos com os recursos de Estados e prefeituras, o que sempre foi obrigação deles
A Constituição da República diz, logo em seu 2º artigo, que os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são “independentes e harmônicos entre si”. Seu guardião, o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Judiciário, precisa com urgência obedecê-la. Nesta quinta-feira (23), o ministro Flávio Dino determinou que Municípios e Estados devem administrar de acordo com o que ele traçou para autoridades de Brasília. Para entender como o STF chegou a essa hegemonia é preciso relembrar fatos do passado recente, bem antes de Flávio Dino conquistar mandatos no Maranhão pelo Partido Comunista do Brasil.
Após o fim do regime militar, em 1985, foram feitas eleições no ano seguinte para se formar a Assembleia Nacional Constituinte, o colegiado apto a escrever o tal livrinho (como o chamava o deputado Ulysses Guimarães, presidente da ANC e da Câmara) guardado pela Suprema Corte. Dezenas de condenados por crimes graves haviam sido anistiados em 1979, puderam ser candidatos e se elegeram para o Congresso. Somados aos demais setores da sociedade assustados com torturas e mortes em quartéis, ruas e delegacias, o que hoje se chama de esquerda formou maioria. Em tese, tudo o que se desejava evitar era a volta do arbítrio. Para isso, a medida mais radical aprovada pela ANC foi o fortalecimento do Ministério Público, que se tornou fiscal da lei, dono da ação penal.
Foram armados diversos mecanismos constitucionais e infraconstitucionais para garantir o desempenho do MP em sua nova missão, a de bedel da vida do País. Virou um monstro no tamanho, na força e na voracidade. Desde a promulgação da Carta, em outubro de 1988, a máquina pública foi multiplicada pela estratosfera, os gastos governamentais subiram a Marte e qualquer coisa passou a ser com ele, o organismo que sustentava o corpo de uma nação, o que se apelida de Parquet, seu nome em francês. Para resumir a conversa, a política foi sendo criminalizada e, ao longo do tempo, os órgãos de repressão conseguiram de volta o que tiveram durante a ditadura militar: o domínio do pensamento e das ações.
O que o ministro Dino mandou deve ser cumprido sob pena de alguma das sanções crudelíssimas, como a que foi aplicada à moça do batom. Igual ao poema de Eduardo Alves Costa (não, não é o cantor popular): “Na primeira noite eles se aproximam/e roubam uma flor/do nosso jardim./E não dizemos nada./Na segunda noite, já não se escondem:/pisam as flores,/matam nosso cão,/e não dizemos nada./Até que um dia,/o mais frágil deles/entra sozinho em nossa casa,/rouba-nos a luz e,/conhecendo nosso medo,/arranca-nos a voz da garganta./E já não podemos dizer nada”.
As polícias judiciárias (Civil e Federal), os Ministérios Públicos (são muitos e até tribunais de contas têm os seus) e o Poder Judiciário, das comarcas de interior ao STF, enfim, todo o sistema passou a mandar onde os demais poderes já não podiam – no País inteiro. Por isso, ontem não foi apenas Dino que tomou decisão que afeta o que não é da sua alçada. O Supremo vai permitir a nomeação de parentes em cargos públicos e, junto com o STF, ganhou do Senado 530 cargos. Você não pode dizer nada, porque arrancaram a voz da sua garganta.
E as emendas? Pois é, elas nada têm a ver com o Supremo. Trata-se de um ajuste entre Legislativo e Judiciário. Em cidades pequenas e médias, o Ministério Público já administra há muito tempo. Determina o que prefeitos, vereadores e secretários são obrigados a fazer. Caso não façam, ganham processo, cadeia, inelegibilidade. E por que os ministros fazem isso? Porque podem. Ninguém reage e, quando reage, está no sal, pisam em suas flores, matam seu cachorro. Os ministros sabem o poder que têm. “Nós, que sentamos nas cadeiras, temos dimensão delas”, disse o ministro José Dias Toffoli, chorando, ontem no STF. Imagine as lágrimas que prefeitos e governadores deveriam verter a partir de agora.
Como o STF e os Ministérios Públicos dominam a narrativa, os componentes dos demais poderes são desonestos até que provem o contrário, estando atrás das grades ou debaixo de inelegibilidades.
Medida fortalece mais dois tribunais políticos
Goiás tem dois Tribunais de Contas, o TCE (do Estado) e o TCM (dos Municípios), que em Goiás são formados por políticos que deixaram o mandato ou estavam aposentados, à exceção dos procuradores. Não se questiona aqui a credibilidade ou a honorabilidade de seus integrantes, mas a falsa percepção de que só por se chamarem tribunais estão livres de desvios que só o Executivo comete – segundo o que se deduz de decisões recentes do STF. Tem algum senão por serem políticos? Nenhum.
O ministro Flávio Dino citou ambos, inclusive seus Ministérios Públicos, além das procuradorias. Dino mandou que assegurem a conformidade, um termo novo vindo do inglês compliance, que o Governo de Goiás já aplica. Significa vigilância total, um olho no peixe, outro no gato, a partir dos integrantes de cada lugar. No caso, o ministro quer que Estados e Municípios se adaptem ao que já existe no âmbito federal e é uma roubalheira sem fim.
A data-limite é 31 de dezembro próximo, pois a partir de 2026 terão de fazer o que já é sua responsabilidade, ficar de retina arregalada no “modelo federal de transparência e rastreabilidade”. O que o STF tem com isso? Nada. Isso é de fato com os Tribunais de Contas, não com o Supremo Tribunal.
A raiz dos males está sob um tronco alheio às machadadas do Judiciário, as relações promíscuas entre o que o Legislativo vota favorável e o que recebe em troca do Executivo. Como no poema de Eduardo Costa, agora as flores já foram pisoteadas, não há mais jardim, que se juntou à primavera e se tornaram um bairro na periferia de Goiânia.