Lia de Itamaracá e Daúde revelam a potência de um encontro
Pelos Olhos do Mar reúne inéditas e releituras em um projeto sustentado por coerência e diálogo
Lia de Itamaracá e Daúde vêm de caminhos distintos, mas ancorados na mesma raiz da música negra brasileira. Lia, nascida em 1944 na ilha que lhe deu nome, levou a ciranda ao país sem romper o vínculo com o mar e a comunidade que a formaram. Daúde, baiana de 1961 moldada artisticamente no Rio, destacou-se nos anos 1990 com uma obra de urbanidade e precisão estética. Juntas, aproximam a ritualidade de Lia e a pulsação contemporânea de Daúde, criando um espaço onde memória e renovação se encontram com naturalidade.
O álbum Pelos Olhos do Mar, lançado na última quinta-feira (27), pelo Selo Sesc, nasce dessa junção. Não foi cálculo, mas necessidade. Daúde descreve o início sem rodeios: “foi uma insatisfação de poucos encontros juntas, a gente viu que tinha uma potência juntas, aí veio essa vontade, essa urgência de resolver isso”.
As inéditas chegaram por adesão espontânea. Não houve formalidade, mas reconhecimento. Emicida, Otto, Chico César, Céu, Karina Buhr e Russo Passapusso enviaram músicas porque viram consistência no encontro. Daúde resume: “Os compositores já tinham esse interesse pela Lia, né, e me conheciam também. Acho que o desejo de participar do álbum veio dessa linha: interesse, respeito, carinho de estar presente nesse momento, de colaborar. Foi isso o mote, independente de moda ou de ter milhões de seguidores. Foi pela música, pela dupla, pelo respeito ativo à história de nós duas”.
A organização do repertório avançou sem atritos, guiada por escuta e desprendimento. “Eu acho que, organicamente, foi acontecendo, e se algo marcou foi a harmonia artística, começando por nós duas. Já vínhamos fazendo participações nos trabalhos uma da outra e nos encontros também. Quando falo dos encontros, é o Marcos Preto, o Pupillo, dando desprendimento do ego, ouvindo muito o que eu tinha a dizer e o que a Lia também trazia. A gente tem as músicas, tanto as inéditas quanto as que não são inéditas, e tem prazer em cantar. Foi muita conversa, muito respeito”.
A faixa título organiza o núcleo conceitual do disco. Segundo Daúde, o nome carrega várias camadas: “quando se fala pelos olhos do mar, é o mar geral, é o mar de Itamaracá, o mar de Salvador, é o mar dos olhos das pessoas quando ouvem a gente cantando. É o mar da travessia dos escravos. Foram esses mares que deram a certeza de que o nome do álbum seria esse, Pelos Olhos do Mar”.
O repertório atravessa bolero, coco e ciranda sem nostalgia. Lia dá novo contorno ao bolero Quem É. Daúde revisita A Galeria do Amor com canto contido e apoio do Rhodes de Zé Ruivo. Bordado, de Karina Buhr, ganha arranjo de cordas de Antonio Neves, e Eu Vou Pegar o Metrô, de Cátia de França, reaparece com vigor e reforço dos vocais de Assucena e Juliana Linhares.
Há no disco um eixo que, para Daúde, acompanha toda a sua trajetória. “a gente sempre veio fazendo esse movimento do feminino, da diversidade. E aí volta a palavra respeito, a cultura popular que sempre permeou a minha carreira. Sempre tive um olhar por essas pessoas, essas pessoas que têm resistência, que conseguem levar com dignidade essa música de cultura popular. Então é isso, é uma constatação. Eu sempre estive no caminho certo, e esse olhar não é errado, é contínuo. É um olhar que pode ir para outras pessoas, com responsabilidade, um olhar de carinho, de respeito à música”.
Pelos Olhos do Mar não registra apenas um encontro. Consolida uma continuidade e devolve ao presente a força da memória compartilhada.

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