Abandono animal cresce nas áreas urbanas e pressiona abrigos
Estudo aponta que centros urbanos concentram mais de 80% dos casos e evidencia falhas nas políticas públicas
O abandono animal no Brasil não ocorre à margem da vida social. Ele se manifesta no centro dela. Nas ruas, nos cruzamentos, em terrenos baldios espremidos entre prédios e nas calçadas por onde passam diariamente milhares de pessoas. Um levantamento realizado pelo quarto ano consecutivo pelo Cobasi Cuida, em parceria com ONGs e protetores independentes, revela que mais de 80% dos casos de abandono registrados no país acontecem em áreas urbanas. O dado desloca o debate do campo da exceção para o da rotina e evidencia que o abandono animal é parte constitutiva do modo como as cidades brasileiras funcionam.
Ao contrário da narrativa que associa o problema a regiões afastadas ou à precariedade rural, os números mostram que o abandono prospera onde há maior circulação de pessoas, serviços e infraestrutura. Trata-se de um fenômeno urbano, recorrente e previsível, que se repete diariamente diante de uma combinação conhecida de omissão do poder público, desinformação e ausência de políticas preventivas de longo prazo.
As cidades como cenário recorrente
De acordo com a pesquisa, que ouviu 64 representantes, sendo 85,9% ligados a ONGs e 14,1% protetores independentes, 82,9% dos casos de abandono ocorrem em áreas urbanas. A maior parte das ocorrências é registrada em vias públicas e outros pontos da cidade, enquanto uma parcela menor aparece nas proximidades de estabelecimentos comerciais. As áreas rurais concentram 17,2% dos casos.
A concentração urbana impõe um efeito imediato: o aumento da pressão sobre abrigos, lares temporários e protetores independentes, que passam a lidar com um fluxo constante de animais em regiões já densamente povoadas. Para Daniela Bochi, gerente do Cobasi Cuida, os dados reforçam que o abandono não pode ser tratado como um problema pontual. “O abandono está diretamente ligado à falta de informação e de ações preventivas, como a castração. Quando esse cenário se concentra nos centros urbanos, ele pressiona ainda mais as ONGs e protetores, que já operam no limite”, afirma.
Filhotes e a engrenagem do abandono animal
O perfil dos animais resgatados ajuda a compreender por que o sistema de acolhimento entra em colapso com tanta frequência. Segundo o levantamento, 31% dos resgates envolvem ninhadas de filhotes, um indicador direto da ausência de controle reprodutivo em larga escala. Outros 10% correspondem a animais com necessidades especiais, como doenças crônicas, deficiências físicas ou idade avançada, que exigem cuidados contínuos e dificultam a adoção.
Em termos de espécies, os cães lideram os resgates, com 54%, seguidos pelos gatos, que representam 32%. A presença massiva de filhotes acelera o ciclo do abandono, já que cada resgate amplia rapidamente o número de animais sob responsabilidade das organizações, muitas vezes sem perspectiva imediata de adoção.
Abrigos cheios, adoções insuficientes
Os dados ganham contornos ainda mais claros quando analisados em conjunto com a Pesquisa Transparência dos Dados de Abrigo de Animais, da Medicina de Abrigos Brasil. Apenas no primeiro semestre de 2025, foram registradas 5.325 entradas de cães e gatos em abrigos e lares temporários no país, enquanto as saídas somaram 1.685. A proporção indica um desequilíbrio: para cada animal que deixa o sistema, mais de três entram.
As adoções seguem como principal forma de saída, com taxas superiores a 85% tanto para cães quanto para gatos. Ainda assim, não acompanham o ritmo das entradas. A pesquisa mostra que os abrigos privados concentram a maior parte dessa dinâmica, respondendo por mais de 80% das entradas e saídas, o que evidencia a dependência do país em relação à atuação da sociedade civil.
Entre os desafios mais citados pelas organizações estão a falta de espaço físico, os custos crescentes e a devolução de animais já adotados, prática que prolonga a permanência nos abrigos e amplia a sobrecarga das equipes.
O vazio das políticas públicas
Quando questionados sobre as medidas capazes de enfrentar o problema de forma estrutural, os participantes do levantamento apontaram de forma reiterada a necessidade de políticas públicas mais rigorosas. A fiscalização contra maus-tratos e abandono aparece como prioridade, assim como a ampliação de campanhas de castração em larga escala e ações educativas permanentes.
As estimativas reunidas pela pesquisa indicam que cerca de 4,8 milhões de cães e gatos vivem em situação de vulnerabilidade no Brasil, dos quais aproximadamente 201 mil estão sob cuidados de ONGs e protetores. Em escala global, o país concentra cerca de 30 milhões de animais abandonados, o equivalente a um em cada quatro no mundo.
Para Daniela Bochi, a produção de dados é parte essencial do enfrentamento do problema. “Produzir, apoiar e dar visibilidade a dados consistentes é fundamental para transformar a realidade do abandono animal. Só com informação qualificada é possível fortalecer ações preventivas e ampliar a adoção responsável”, conclui.
Diante desse cenário, a adoção aparece como uma resposta prática a um problema que se repete diariamente nas cidades. Cada animal retirado das ruas ou de um abrigo reduz, ainda que de forma limitada, a pressão sobre um sistema permanentemente sobrecarregado. São cães e gatos encontrados em calçadas, terrenos vazios e portas de comércio, muitas vezes já habituados à circulação urbana e à ausência de cuidado.A adoção não altera, por si só, a estrutura que sustenta o abandono, mas muda de forma concreta o destino de animais que hoje vivem sem qualquer proteção.

. Foto: Cajazeiras
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