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terça-feira, 26 de novembro de 2024
Essência

Memória comprometida

Filmes que deveriam ser preservados estão se deteriorando devido às más condições dos locais que os guardam

Postado em 22 de fevereiro de 2016 por Redação

Depois do incêndio que atingiu a Cinemateca Brasileira no início deste mês (3), destruindo mais de mil rolos originais de filmes rodados até a década de 1950, o alarme que já estava disparado há tempos soou ainda mais alto. O acervo fílmico no Brasil, afinal, tem condições de sobreviver a inci­dentes e à ação do tempo?

São poucas as instituições brasileiras voltadas à preservação desse tipo de material. E elas estão concentradas no eixo Rio-São Paulo. Segundo pesquisadores e especialistas ouvidos pelo Globo, esse é justamente um dos problemas que ameaçam a manutenção do audiovisual no país – além da histórica escassez de recursos e da falta de mão de obra especi­a­lizada.

“O cenário é extremamente centralizador, e isso é perigoso e pouco democrático”, destaca Rafael de Luna, diretor técnico da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA). “O que eu defendo é uma rede de arquivos, um sistema de cinematecas regionais para que a gente não perca tudo caso um lugar pegue fogo”, completa.

As principais instituições de preservação de acervo fílmico, além da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, são a Cinemateca do MAM, o Arquivo Nacional e o Centro Técnico Audiovisual (CTAv), todas concentradas no Rio. O clima tropical da cidade oferece um desafio adicional para a preservação das películas, já que estruturas de climatização e de controle de umidade são essenciais para garantir a integridade do material. O caso mais alarmante é da Cinemateca do MAM, localizada ao lado do mar.

Fundada em 1955, a instituição conta hoje com um acervo de cerca de 100 mil rolos, entre negativos e cópias de preservação. Embora a maior parte já tenha sido duplicada, além de não ser composta por nitrato – e, portanto, sujeita à autocombustão, como aconteceu na Cinemateca Brasileira –, proteger o material original contra desgastes segue sendo um desafio.

“Se tomarmos como parâmetro as diretrizes da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (Fiaf), as condições estão longe de serem ideais”, diz Hernani Heffner, diretor de conservação da Cinemateca do MAM, que acrescenta: “Para começar, teríamos que ter câmaras funcionando em temperaturas próximas a 0ºC, e hoje trabalhamos entre 16ºC e 18ºC. Por estarmos ao lado do Oceano Atlântico, a luta contra a umidade é inglória. Nossos umidificadores não são suficientes. Oscilamos em torno de 60% de umidade, quando o ideal é entre 20% e 30%. É uma bomba-relógio”. 

Heffner também destaca a falta de profissionais especializados em preservação de audiovisual, um problema que atinge todas as instituições dedicadas à função – incluindo a Cinemateca Brasileira, apontada pelos pesquisadores como tendo a melhor infraestrutura. Ela passou por diversas crises desde o começo de 2013, quando a então ministra da Cultura, Marta Suplicy, exonerou o diretor Carlos Magalhães. Também sofreu com funcionários demitidos e departamentos reduzidos.

“Esse descaso certamente contribuiu (para o incêndio)”, avalia o arquivista Mauro Do­min­gues, especializado em conservação. “A Cinemateca Brasileira não conseguiu revisar os filmes, o que significa botá-los numa mesa, rebobiná-los, checar se estão contaminados. Por fim, os profissionais capacitados para analisar filmes em suporte de nitrato de celulose têm de ser altamente treinados, e onde estão eles?”, completa.

A maioria dos especialistas argumenta que o investimento do Estado na área nunca foi uma prioridade. A Constituição prevê a preservação do patrimônio histórico cultural, mas não existe, especificamente, uma legislação voltada para a área fílmica.

Falta de investimento

O secretário do Audiovisual, Pola Ribeiro, reconhece a falta endêmica de investimento, mas destaca o avanço no desenvolvimento do Plano Nacional de Preservação do Patrimônio Audiovisual Brasileiro, criado em parceria com a ABPA. O plano prevê linhas de financiamento para o setor, além de melhoria na capacitação de profissionais, e deve ser apresentado em maio no Congresso Nacional de Cinema.

“Enquanto isso, estamos focados na difusão e na distribuição de conteúdo. Se cada estudante do Ensino Básico assistir a dois longas em posse da Cinemateca Brasileira, por exemplo, começa a se criar, a longo prazo, uma consciência social da importância da preservação do cinema brasileiro. A sociedade quer esgoto, viaduto, rua. São coisas importantes, mas ain­da não há uma noção generalizada da relevân­cia da preservação”, diz Ribeiro, citando o projeto, ainda sem previsão de lançamento, de um serviço de streaming que possa transmitir, entre outros conteúdos, filmes de arquivo. 

Até poucos anos atrás, segundo ex-funcionários que falaram ao Globo sob a condição de anonimato, a situação do CTAv era calamitosa. Eles relataram a presença de profissionais sem treinamento que usavam produtos de limpeza inadequados no acervo e cor­redores com cheiro de vinagre e rolos de filme espalhados. O panorama começou a mudar em 2015, quando foi concluída a construção de um prédio anexo ao CTAv, que deve oferecer condições ideais de temperatura e pressão. O depósito conta com nove salas-cofre que, juntas, comportam até 100 mil rolos. Hoje, a instituição possui 30 mil.

A transferência do material do edifício antigo para o novo, porém, ainda não terminou. A demora, segundo o coordenador-geral do CTAv, Eduardo Castro, é normal. 

“Você não pega os rolos de um prédio, põe num carrinho e os leva para o novo. Não funciona assim. É necessário revisá-los e condicioná-los de maneira adequada. O cuidado exige tempo”, diz Castro, reforçando que todo o conteúdo já está digitalizado. 

Já no caso do Arquivo Nacional, o maior problema é a falta de espaço. Hoje com 60 mil rolos, o local não recebe mais filmes. Um projeto, atualmente em fase de captação de recursos, pretende construir um novo prédio com as condições de preservação ideais. Mas o orçamento gira em torno de R$ 40 milhões e ainda não há previsão de início das obras.

“Por enquanto, é impossível falar, no Brasil, em condições ideais de preservação”, finzaliza Domingues, que também é coordenador-geral de processamento e preservação do Arquivo Nacional. 

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