O legado de Babenco
O diretor, falecido nesta semana, sai de cena com uma das filmografias mais sólidas do cinema nacional e grandes êxitos no exterior
Júnior Bueno
O cinema perdeu nesta semana um dos principais responsáveis por seu prestígio no exterior. E se trata de um argentino. Com uma das filmografias mais sólidas do cinema nacional, Hector Babenco esteve à frente de grandes filmes, alguns dos quais ajudaram a firmar a identidade do cinema feito no Brasil como algo sério, para além das chanchadas e o erotismo. Nascido em Mar Del Plata, na Argentina em 1946, escolheu o Brasil para viver, e se naturalizou brasileiro em 1977.
O diretor possui um histórico de extrema qualidade e de reconhecimento internacional. Sua carreira começou com um documentário sobre Emerson Fittipaldi – O Fabuloso Fittipaldi –, lançado em 1973. Seu primeiro longa-metragem foi O Rei da Noite, de 1975, com Paulo José e Marília Pêra como protagonistas. O diretor confessou, tempos depois, ser ainda inexperiente demais para esta empreitada, e, em entrevista, revelou ter ganhado um puxão de orelhas de Marília Pêra.
O diretor relembrou: “A Marília Pêra, quando acabaram as filmagens, disse para mim: ‘Você está muito aquém do que eu esperava de um diretor. Você é muito jovem e ainda não sabe dirigir ator’. Eu não tinha como responder. Só disse: ‘Na próxima vez, quem sabe a gente faz um trabalho melhor’. E aí a gente fez Pixote”.
Em seguida, veio a cinebiografia de um dos mais famosos bandidos do Brasil, Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia. Estrelado por Reginaldo Faria, o filme chamou muito a atenção da imprensa e do público, em 1977, ano de seu lançamento. O reconhecimento internacional do diretor aconteceu com Pixote: A Lei do Mais Fraco, de 1981. O filme lidava com a vida violenta em São Paulo, e tudo foi mostrado sob o ponto de vista de um menor de idade que envolvido com crimes e prostituição.
Com Marília Pêra no elenco, Pixote foi indicado a vários prêmios internacionais e ganhou alguns deles. A história do filme ganhou contornos trágicos na vida real. Neste filme, Hector Babenco construiu um dos mais cruéis retratos da realidade, nas ruas de São Paulo, onde crianças têm sua inocência retirada ao entrarem em contato com um mundo de crimes, prostituição e violência.
Descoberto ainda criança por Babenco, nas ruas de São Paulo, Fernando Ramos da Silva, o Pixote, tempo depois do êxito do filme, voltou à sua vida pregressa, vivendo num ambiente de total miséria. Chegou a tentar seguir a carreira de ator, ingressando na Rede Globo com a ajuda do escritor José Louzeiro, porém foi demitido por ser incapaz de decorar os textos, já que era semialfabetizado. Devido à influência dos irmãos, retornou à criminalidade, sendo assassinado por policiais em 1987.
Com O Beijo da Mulher Aranha (1985), Babenco consegue novamente chamar a atenção do mundo do cinema. O diretor recebeu indicação ao Oscar de Melhor Diretor, mas acabou perdendo. Mas William Hurt, também protagonista ao lado de Sonia Braga, venceu o Oscar de Melhor Ator. Filmado no Brasil, mas falado em inglês, o filme foi uma porta imensa do Brasil em Hollywood, numa época em que o cinema brasileiro ainda não era visto como uma indústria.
O Beijo da Mulher Aranha deu um enorme reconhecimento aos então desconhecidos Hector Babenco, William Hurt, Raul Julia e Sônia Braga. O filme foi produzido logo após o auge da repressão política, na América Latina, baseado no romance El Beso de La Mujer Araña, escrito pelo argentino Manuel Puig em 1976, no mesmo ano em que a democracia é novamente derrubada em seu país, apenas três anos após ser reestebelecida.
Com o ingresso no cinema americano, Babenco dirigiu nos Estados Unidos o drama Ironweed (1987), com os renomados Jack Nicholson e Meryl Streep. O filme recebeu indicações ao Oscar de Melhor Ator e Melhor Atriz. Desde então, a carreira do diretor seguia entre os Estados Unidos, a Argentina e o Brasil. Em 1991, é lançado Brincando nos Campos do Senhor, novamente com um grande elenco americano que tinha Daryl Hannah, Tom Berenger, John Lithgow, Aidan Quinn, Tom Waits – dentre outros. A história mostrava missionários atuando na floresta amazônica.
Em 1998, Babenco dirigiu Coração Iluminado. O roteiro mostrava um argentino que volta a seu país para visitar o pai que está à beira da morte. Após um hiato de cinco anos, o diretor volta em 2003 com aquele que talvez seja seu maios sucesso comercial: Carandiru. Inspirado no livro de Drauzio Varella, o longa mostra o dia a dia complicado dentro do famoso presídio que existiu na cidade de São Paulo. O filme tem no elenco atores famosos no Brasil como Milton Gonçalves, Rodrigo Santoro, Maria Luísa Mendonça e Lázaro Ramos.
Em 2007, sai O Passado, filmado na Argentina, com Gael García Bernal, Mabi Abele, Ana Celentano – dentre outros atores. Este foi o último trabalho de Paulo Autran. O último longa dirigido por Babenco foi Meu Amigo Hindu (2015). Filmado inteiramente em São Paulo e falado em inglês, o filme teve Willem Dafoe como protagonista. Ele interpreta Diego Fairman, um diretor que está perto de morrer, o que o torna uma pessoa com quem é difícil se relacionar. O título vem da referência a um garoto indiano que conhece nos Estados Unidos, que também passa por tratamento, e junto a Diego encontra uma saída lúdica para enfrentar a doença.
De certa forma, este longa é quase uma biografia do próprio Babenco. Nos anos 1990, o diretor foi vítima de um câncer no sistema linfático que o levou a sessões de quimioterapia. No filme, quando confrontado pela Morte (Selton Mello), o personagem de Defoe expressa só um desejo: realizar mais um filme. “Hoje, depois de ser muito assediado pela ideia de fim, meu único pedido à Morte era que ela me deixasse fazer mais um filme. E esse é o filme que a morte me deixou fazer”, disse, em entrevista na época do lançamento.
Hector Babenco sai de cena com uma das mais respeitadas biografias da história do cinema brasileiro, latinoamericano e mundial. O diretor morreu aos 70 anos, na noite de quarta-feira (13), por conta de uma parada cardíaca, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Seu próximo projeto, um filme chamado Cidade Maravilhosa, era anunciado como o último filme de uma carreira de mais de quatro décadas. O motivo: as recorrentes dificuldades em ter um projeto aprovado em editais de cinema. “Não aguento mais. Estou de saco cheio de tudo isso”.