E ao pó retornas
Produzida por José Padilha e estrelada por Wagner Moura, a segunda temporada de ‘Narcos’ foca na perseguição, prisão e morte do chefão do tráfico colombiano, Pablo Escobar
Um dos maiores problemas cotidianos do cidadão do século 21 é saber como lidar com spoilers. A palavra em português literalmente significa “espoliador” ou aquele que pratica espoliação, estraga deteriora, degrada, dilapida ou depreda algum bem. O termo se refere a qualquer fragmento de fala, texto, imagem ou vídeo que faça revelações de fatos importantes ou mesmo do próprio desfecho da trama de filmes, séries, desenhos animados, animações e animes, conteúdo televisivo, livros e videogames em que, na maioria das vezes, prejudicam ou arruínam a apreciação de tais obras pela primeira vez.
Com o advento da internet, é quase impossível evitar que haja alguém que, mesmo sem querer, estrague o fim, falando mais do que deve. Pensando nisso, a Netflix adotou uma ótima estratégia para divulgar a segunda temporada de Narcos, série que retrata a ascensão, o apogeu e a queda do chefão do tráfico da Colômbia, Pablo Escobar. Como se trata de uma história real, todos sabem ou podem saber que Escobar morreu em 2 de dezembro de 1993. Irritar-se por descobrir isso seria como não querer, de maneira nenhuma, saber que o navio de Titanic afunda ou que Jesus é crucificado em A Paixão de Cristo.
A rede de streaming, que colocou todos os episódios no ar no último dia 2 de setembro, divulgou a série exatamente contando seu fim. As primeira páginas dos jornais O Estado de São Paulo e Folha de S.Paulo estamparam as manchetes do fim de Escobar, e até o SBT ressuscitou o jornal mundo-cão Aqui Agora, em sua página no Facebook, com trechos das matérias que narravam o fim do narcotraficante em 1993. Depois de saber que Pablo Escobar vai comer capim pela raiz no último episódio; o que resta é saber como isso vai ocorrer – é esse um dos méritos da segunda temporada.
A primeira temporada de Narcos relatou a ascensão do império do narcotraficante Pablo Escobar, contando em dez episódios mais de 20 anos de sua vida. Já a segunda, no mesmo número de episódios, relata a sua queda, iniciando onde a primeira terminou, com a fuga de Pablo da prisão, e culminando com sua captura e morte, em Medelim, num esforço conjunto das autoridades colombianas e americanas. Os novos episódios mantêm a qualidade vista inicialmente, concluindo, de modo redondo, a saga de um homem que se tornou uma lenda. Os episódios conservam a estrutura da narrativa apresentada na primeira temporada. Por meio da narrativa em off do agente da lei Steve Murphy (Boyd Holbrook), o espectador é imerso, num tom quase documental, no processo de desmantelamento da organização de Pablo (Wagner Moura) após sua fuga da prisão.
Com o fiasco representado pela fuga do criminoso, a pressão internacional por sua captura cresce e, com a consequente perda constante de aliados, que já não enxergam o narcotraficante como alguém com o prestígio necessário para se manter no mercado, principalmente depois que um atentado a bomba em um shopping, repleto de civis, é associado a ele. Escobar vê-se sozinho, reduzido a uns poucos capangas leais e afastado de sua família, suscetível à captura. Como não poderia deixar de ser, o tempo ganha importância muito grande na série. As coisas não são tão corridas como no primeiro ano, o que dá espaço para Wagner Moura brilhar como era de se esperar.
A atuação de Moura nesta temporada está entre muito inspirada e genial. Apesar de anteriormente receber algumas críticas pelo sotaque, nem isso pode ser usado contra ele agora. O ator entrega uma performance forte, intensa e com muita carga dramática. Wagner cria um personagem complexo, de forma tão fascinante, que o público vai com ele, chegando até a lamentar sua morte. Pablo está angustiado durante toda temporada. E o espectador está da mesma forma por não saber como lidar com o fato de gostar de um personagem tão detestável.
A equipe da produção, em especial os montadores, foi muito importante neste desenvolvimento. Diante dos ataques mais selvagens do protagonista, a série faz questão de mostrar imagens de arquivo reais, jogando na cara do público o fato de aquela pessoa ter existido e ter cometido tamanhas barbaridades. E o espectador tem de lidar com o sentimento de torcer por um bárbaro, o que por si só já valoriza a experiência.
Indicado ao Globo de Ouro deste ano, é de se imaginar que Wagner Moura concorra a tudo o que for possível em 2017. Mas, além dele, outros atores brilham no elenco. Pedro Pascal e Boyd Holbrook seguem muito bem na pele dos agentes do DEA. Holbrook continua como narrador, mas dentre os ‘mocinhos’ é Pascal que rouba a cena. Seu agente Peña está ainda mais complexo e surge justamente para abranger o debate sobre os fins justificarem os meios.
Mesclando muitas cenas de ação (afnal, trata-se de um programa com a grife de José Padilha de Tropa de Elite) com momentos de melancolia, a segunda temporada coloca a série dentre as melhores produções da TV nos últimos anos. Wagner fez um Escobar capaz de fazer frente a vilões do porte de Walter White (Breaking Bad) e Tony Soprano (A Família Soprano). Agora, a série tem o desafio de se inovar na terceira temporada, ainda não confirmada, mas muito provável. Sem Moura e seu Escobar, Narcos deve sofrer para criar um antagonista tão complexo. É esperar.