Brasil retira radares e patina no compromisso de frear mortes no trânsito
Em 2018, número de mortos beirou os 34 mil, contra 44 mil em 2015. Foto: Folha Press
Da Redação
Com validade a partir de hoje, suspensão do uso desse tipo de equipamento e flexibilização de normas em discussão no Congresso podem afetar esforço para reduzir acidentes fatais assumido com a ONU, dizem especialistas. Em 2018, número de mortos beirou os 34 mil, contra 44 mil em 2015.
O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) completa mês que vem 21 anos em vigor com propostas de reformulações enviadas para discussão e apreciação do Congresso Nacional e o desafio de se modernizar. Nas rodovias federais que cortam o país, mudanças controversas já estarão valendo a partir de hoje, com a suspensão dos radares móveis.
No pacote de flexibilização proposto pelo Executivo ao Congresso Nacional, pontos como o fim da obrigatoriedade do transporte de crianças em cadeirinhas de retenção nos veículos e duplicação do limite de pontos da carteira nacional de habilitação (CNH) ameaçam de vez, na opinião de especialistas, o compromisso assinado pelo Brasil junto a mais de uma centena de países de reduzir em 50% o número de mortes no trânsito.
Faltando um ano para o encerramento do prazo do pacto firmado na Organização das Nações Unidas (ONU), o medo agora é de retrocesso em avanços conquistados, a passos lentos, ao longo de duas décadas. O compromisso – a Década de Ação pela Segurança no Trânsito – prevê redução dos índices no período de 2011 a 2020. “Em 2015, segundo o DataSUS, foram 44 mil mortes por acidentes de trânsito no país. Em 2018, o número caiu para pouco mais de 34 mil. O país conseguiu em quatro anos uma redução de 10 mil mortes por ano e isso não foi à toa”, afirma o consultor em trânsito Osias Batista.
“Reduzir de 44 mil para 34 mil não é fato para comemoração, mas mostra que estamos no caminho certo”, diz. Na reunião da ONU, em Brasília, em 2015, o Brasil era um dos poucos que não havia conseguido reduzir os índices. Nos países em desenvolvimento, a taxa de mortes por 100 mil habitantes se mostrava entre 3 e 4. No Uruguai, era de 11, Argentina 12 e Bolívia, 15. Brasil contabilizava na época 23, ao lado de Botswana, só perdendo para nações como Laos e Camboja.
Ele cita ainda outro dado. Em 2017, foram aplicadas 10 mil multas no Brasil por descumprimento ao transporte de criança em cadeirinha. Em 2018, 8 mil. “Em dois anos, 18 mil pais foram surpreendidos por não cuidar da segurança de seus filhos”, avalia. “A percepção do risco no Brasil é muito pequena. Ninguém achava que a cadeirinha era importante até um tempo atrás. Mesmo assim, (há pais que) acham que não há risco porque dirigem devagar, ‘só até ali, a criança vai na janela olhando’. Não temos cultura para isso. Infelizmente, tem que haver obrigatoriedade. Quando o Estado fala que não vai ter multa, de certa forma, está relaxando isso”, completa.
Outro ponto importante na avaliação de Osias Batista é em relação aos radares. Na quinta-feira, foi publicada no Diário Oficial da União a decisão do presidente Jair Bolsonaro de suspender o uso os radares móveis, estáticos e portáteis com o objetivo de “evitar o desvirtuamento do caráter pedagógico e a utilização meramente arrecadatória dos instrumentos e equipamentos medidores de velocidade”.
Em Minas, 23 equipamentos foram recolhidos pela Polícia Rodoviária Federal (PRF). Agora, a única proteção são as placas informando o limite de velocidade e 8 mil pontos com radares fixos para toda a malha brasileira. “Qualquer lei só vale se tiver punição pela desobediência. As pessoas em geral só obedecerão à placa se souberem que em qualquer uma delas pode haver alguém escondido pronto para multar”, diz. “Essa discussão sobre radar é um retrocesso impressionante. O que mata num acidente é a velocidade, associada a todas as outras infrações e riscos de direção.”
Critérios
O mestre em transportes e consultor técnico da Locale TT, Paulo Monteiro, teme a adoção de propostas de solução que podem criar problemas ainda piores. Ele chama ainda atenção para o fato de não se discutir o cumprimento de regras. “Há muito tempo se discute a placa, mas não se fala das normas. Como o trânsito é gerenciado localmente, há situações em que o limite nas estradas (caso de rodovias que cortam por dentro as cidades) não é considerado por razões técnicas”, afirma.
Para Monteiro, a falta de critérios técnicos facilita o uso do radar como instrumento de arrecadação. “Usa-se muitas vezes o radar para compensar problemas que a administração pública não foi capaz de tratar. O limite de velocidade deveria corresponder à realidade e percepção que motorista tem do perigo.”
O consultor da TT Locale defende um processo de redução de velocidade e não que ela ocorra de forma abrupta, substituindo o mau uso da regulamentação por outro pior. “Diferentemente do que muitos pregam, os radares têm efeito pedagógico. Posso ser multado em qualquer lugar se não cumprir a regra. E como resolvo o cumprimento de regra não é tirando numa canetada, mas fazendo com que cada órgão de trânsito de estados e municípios sigam critérios técnicos.”
O professor e coordenador das disciplinas de engenharia de transporte e trânsito da Universidade Fumec, Márcio Aguiar, também defende o olhar técnico como base das decisões. “Cadeirinha, número de pontos na carteira, todos essas questões serão analisadas pelo Congresso. Não mudarão só por decreto do presidente. A população reclama de alguns pontos, o CTB precisa ser revisto”, diz.
Outros pontos merecem atenção, no caso do especialista, para que se resolvam problemas em estradas projetadas para receber número de veículos bem inferior ao atual. Caso da BR-381 (Belo Horizonte/Vitória), cuja duplicação se arrasta há anos. Acompanhar a situação dos acidentes nos trechos de onde os radares móveis foram retirados é outra missão daqui pra frente, avalia o professor, para quem o número de mortos nas estradas brasileiras está na casa dos 50 mil por ano – bem superior aos 34 mil registrados pelo Ministério da Saúde. “É preciso muito investimento em infraestrutura nas estradas, mudar modal, fazer ferrovia pra tirar caminhões. Desde a década de 1980, não se faz grande investimento na infraestrutura de transporte do país.”
Linha do tempo
1997 – Promulgado o Código de Trânsito Brasileiro: No artigo 65 determinou a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança para condutor e passageiros em todas as vias do território nacional
Maio de 2008 – entrou em vigor a resolução 277 do Contran, que determina o uso de assentos especiais para bebês e crianças conforme a idade, com o objetivo de aumentar a segurança e prevenir mortes em casos de acidente de trânsito.
Novembro de 2016 – Tempo mínimo de suspensão da CNH para quem atingiu 20 pontos no período de 1 ano passou de 1 mês para 6 meses. No mesmo período, valores das multas subiram até 66%
Junho de 2018 – Entregue à Câmara dos Deputados projeto de lei que dobra limite de pontos, amplia validade da CNH e acaba com as multas para a falta de cadeiras de retenção para crianças
Agosto de 2019 – Suspenso uso de radares móveis, estáticos e portáteis nas rodovias federais