Liquidação da Ceitec deve ser vista como mais um crime de lesa-pátria
O procurador-geral da Fazenda Nacional, Ricardo Soriano de Alencar, convocou assembleia geral extraordinária para deliberar sobre a “dissolução” da empresa -Foto: Reprodução
Lauro Veiga
No
Brasil, algumas palavras parecem perder o significado ao longo do tempo, por
esquecimento. O entreguista era sempre aquele sujeito ou governo mais do que
disposto a colocar o País e seus recursos à disposição de grupos ou de
potências estrangeiras, em geral a preços de final de feira. E como classificar
a decisão fixada pelo decreto 10.578, de 15 de dezembro passado, de “dissolver”
o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec), única
empresa fabricante de semicondutores da América Latina? Entreguismo, sim. Mais
um crime de lesa-pátria a ser perpetrado pelo desgoverno de plantão. Os atos
devem ser nominados pelo que são, afinal.
Seria
inacreditável se partisse de qualquer outro governo, mas o ato recebeu a
assinatura do próprio ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, o astronauta
e vendedor de travesseiros anatômicos Marcos César Pontes. Logo acima, no mesmo
decreto, as assinaturas do desgovernanteatual e de seu ministro Paulo Guedes, o
favorito dos mercados, colocado no Ministério da Economia exatamente para
“entregar” (olha o verbo aí de novo) o desmonte, não do Estado, mas de todo um
país.
Em
meio a pandemia, a boiada passa praticamente sem reações da nação estarrecida com
os absurdos diários produzidos pelo ocupante de vez do Palácio do Planalto. Mas
não totalmente paralisada: logo na sequência da publicação do decreto
presidencial, os deputados federais Jaques Wagner (PT-BA) e Jean Paul Terra
Prates (PT-RN) apresentaram projeto de decreto legislativo para bloquear a
liquidação da Ceitec, que atua em um setor estratégico e vinha colecionando
avanços e patentes mesmo depois de virtualmente “abandonada” pelo governo.
Será
preciso correr, porque, já na sexta-feira, 18, o procurador-geral da Fazenda
Nacional, Ricardo Soriano de Alencar, representando a União, única acionista da
empresa, convocou assembleia geral extraordinária para deliberar sobre a
“dissolução” da empresa (um eufemismo para a liquidação acelerada da
companhia), nomeação do liquidante e definição do prazo para conclusão do
processo. A assembleia está marcada para 13 de janeiro próximo.
A
grande fuga de cérebros
Especialista
em macroeconomia e desenvolvimento econômico, professor da Fundação Getúlio
Vargas em São Paulo (FGV-SP), Paulo Gala adverte, em seu blog, que a “possível
liquidação da Ceitec (…) pode ser a motivação final para que o Brasil
encaminhe uma das maiores fugas de capital intelectual da história do País”. Esse
“patrimônio intelectual”, reforça ele, “será entregue a países desenvolvidos”.
Gala destaca que, “entre as 18 estatais dependentes (do Tesouro), a Ceitec é a
empresa que possui maior percentual (57%) de colaboradores com pós-graduações,
mestrado e doutorado”. São seis pós-doutores, 40 mestres, 46 pós-graduados, 48
graduados e 25 técnicos, num total de 172 concursados. Considerando-se o tempo
e os recursos necessários para produzir todos esses cientistas e especialistas,
o economista estima que somente na Ceitec “estão investidos, atualmente, mais
de R$ 30,0 milhões e quase mil anos de formação de recursos humanos altamente
qualificados para produzir tecnologia nacional e tornar o país independente de
importações em diversas áreas estratégicas para o desenvolvimento da nação”.
Balanço
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A
sangria começou lá atrás, no entanto. De acordo com Gala, entre 2013 e o ano
passado, a empresa perdeu pouco mais de 30,0% de seus quadros, com a saída de
59 profissionais. Desses, 28 agora atuam “em empresas líderes de mercado com
alcance mundial como Ericsson, ARM, Qualcomm, Apple, NXP, Dialog e Infineon”.Os
restantes 31 “foram para outras empresas no Brasil, inclusive para atuarem em
áreas que não as de suas especializações”.
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Essa
primeira leva de evasões correspondeu“a um investimento de R$ 13,5 milhões e
431 anos de formação” já perdidos pela empresa, prossegue Gala.
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Apenas
para relembrar, os semicondutores estão por trás de toda a guerra econômica e
tecnológica travada neste momento entre os Estados Unidos e a China, são absolutamente
centrais na nova economia do conhecimento e na eletrônica moderna. São o
“cérebro” de dispositivos médicos, da assistência médica remota, de toda a
indústria da comunicação e computação. Estão ainda nos setores de defesa,
transporte, na geração de energia limpa e nas tecnologias na fronteira do
conhecimento, a exemplo da inteligência artificial, da computação quântica, das
redes sem fio avançadas, das tecnologias de Big Data e da internet das coisas.
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Há
uma série de absurdos por trás da ofensiva do Ministério da Economia para
desmantelar uma empresa que, ao contrário do que alegam Guedes e seus
assessores, vinha sendo bem-sucedida. O primeiro deles: a Ceitec foi criada
pela Lei 11.759, de 31 de julho de 2008, e fundada em novembro daquele ano. O
governo decidiu extinguir a empresa por meio de um mero decreto presidencial,
atropelando o Congresso.
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O
secretário especial de desestatização, desinvestimento e mercados do Ministério
da Economia, Salim Mattar, alega que a empresa registrou prejuízo de R$ 12,0
milhões no ano passado e consumiu R$ 907,0 milhões em investimentos do Tesouro
desde sua criação, sem retorno. Mattar, sem o menor rubor nas faces, segue
tática manjada de misturar dados reais com elocubrações inverídicas, apostando
que o pacote será comprado por todos pelo valor de face.
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Somente
na área tecnológica, como mostra o jornalista Fausto Oliveira, no site A
Revolução Industrial Brasileira (https://rib.ind.br/),