Onde estão os protagonistas negros na literatura e na história do Brasil?
Estudo aponta a falta de representatividade na literatura infantil e no ensino, reforçando a importância da mediação e do resgate histórico

A presença negra na história do Brasil é ampla e marcante, mas segue sub-representada tanto na literatura infantil quanto no ensino. Personagens como Zumbi dos Palmares, Machado de Assis e Carolina Maria de Jesus tiveram papéis importantes na cultura e na política do país, mas suas trajetórias ainda são pouco exploradas nas escolas. Esse apagamento da memória negra se reflete também nos livros voltados ao público infantil, onde protagonistas negros ainda são minoria.
Uma análise publicada na revista Em Questão examinou como a literatura infantil pode ajudar a mudar esse cenário. O levantamento avaliou quatro livros premiados entre 2008 e 2022: Obax (André Neves), Hortência das tranças (Lelis), Contos de Moçambique (Luana Chnaiderman de Almeida e Christian Piana) e Da minha janela (Otávio Júnior). Todos foram reconhecidos por prêmios como Jabuti, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e Biblioteca Nacional. O estudo concluiu que essas obras fortalecem a identidade das crianças negras e seguem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais.
Apesar disso, o número de publicações com protagonismo negro ainda é reduzido e pouco divulgado. Mesmo quando disponíveis nas escolas, muitas vezes não recebem a mediação necessária para estimular reflexões sobre diversidade e pertencimento. A simples presença dessas obras não garante que sejam lidas ou discutidas. Para ampliar seu impacto, é necessário que bibliotecários e professores promovam atividades que despertem o interesse dos alunos e incentivem o debate sobre representatividade.
Os livros infantis analisados no estudo mostram como a representatividade pode ser trabalhada de forma positiva. Obax narra a trajetória de uma menina africana que deseja ser contadora de histórias, destacando a oralidade como parte essencial da cultura do continente. Hortência das tranças apresenta uma jovem que transforma sua comunidade por meio da literatura. Contos de Moçambique reúne narrativas tradicionais do país africano, conectando leitores à ancestralidade negra. Já Da minha janela retrata o cotidiano de um garoto que observa sua favela com um olhar sensível e poético.
Além de mapear essas obras, a pesquisa sugere estratégias para aproximá-las do público infantil. Em Obax, por exemplo, propõe-se uma atividade em que as crianças plantam sementes, simbolizando a valorização da identidade. No caso de Hortência das tranças, os alunos são incentivados a criar e contar suas próprias histórias, estimulando a criatividade e o fortalecimento da autoestima. Essas dinâmicas tornam a leitura mais envolvente e reforçam a importância da representatividade.
A falta de diversidade na literatura infantil reflete a forma como a história do Brasil é ensinada. O antropólogo Kabengele Munanga, da USP, afirma que a trajetória dos negros no país é frequentemente reduzida à escravidão, ignorando contribuições em diversas áreas. Esse apagamento faz com que nomes como Milton Santos, geógrafo reconhecido mundialmente, e Lima Barreto, escritor que denunciou desigualdades sociais, sejam pouco lembrados nas escolas.
O conceito da “história única”, termo popularizado pela escritora Chimamanda Adichie, ajuda a entender esse fenômeno. No Brasil, a narrativa predominante ainda retrata a população negra apenas sob a ótica da servidão ou da marginalização, ocultando figuras que tiveram papéis fundamentais na construção do país. Exemplos disso são André Rebouças, engenheiro e abolicionista, e Abdias do Nascimento, um dos principais ativistas do movimento negro.
O apagamento da história negra também reflete no desconhecimento sobre figuras como Dandara, guerreira do Quilombo dos Palmares que se recusou a voltar à escravidão. Da mesma forma, Joaquim Maria Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras, precisou enfrentar barreiras impostas pelo racismo para se tornar um dos maiores escritores do mundo. Carolina Maria de Jesus, com apenas dois anos de escolaridade, escreveu Quarto de Despejo, uma das obras brasileiras mais traduzidas no mundo.
Sueli Carneiro, filósofa e ativista, foi pioneira na luta por políticas de cotas e direitos das mulheres negras. Já Teodoro Sampaio, engenheiro e historiador, ajudou a mapear o Vale do São Francisco e foi um dos fundadores da Escola Politécnica da USP. Essas trajetórias reforçam a importância de um ensino que amplie o reconhecimento de personalidades negras e de suas contribuições para o país.
A análise conclui que tanto a valorização de figuras históricas quanto a mediação de livros infantis com protagonistas negros são são necessários para uma educação mais plural e antirracista. No entanto, alerta que essa abordagem não pode se restringir a datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra. Para que a mudança seja efetiva, essas narrativas precisam estar no cotidiano das escolas, ajudando a combater estereótipos e ampliando a visão de mundo das crianças desde cedo