Quando o afeto falha na origem
Pesquisas mostram que a idealização da família como lugar natural do amor ignora os dados sobre violência doméstica, negligência afetiva e desigualdade na distribuição do cuidado no Brasil
A frase “a família é a primeira escola do amor” circula com frequência em discursos pedagógicos, religiosos e políticos, projetando um ideal afetivo que nem sempre encontra respaldo na realidade. Embora a convivência familiar seja, para muitas pessoas, um espaço de proteção e afeto, os dados sobre violência doméstica, abandono, negligência emocional e desigualdades estruturais no ambiente familiar revelam um quadro mais ambíguo. Longe de ser um território naturalmente amoroso, a família pode funcionar também como cenário de rupturas precoces, reprodução de desigualdades e aprendizagem do medo.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, mais de 320 mil mulheres registraram queixas de violência doméstica no país ao longo de um único ano, sendo a maioria das ocorrências praticada por cônjuges ou familiares diretos. O mesmo levantamento identificou que, em 58% dos casos de estupro de vulnerável, o agressor era um parente da vítima, geralmente pai, padrasto, tio ou irmão. Os dados escancaram o abismo entre o mito da família amorosa e o cotidiano de milhares de pessoas que vivenciam, dentro de casa, os seus traumas mais profundos.
No campo da infância, a situação também é alarmante. Estudo conduzido pela Fundação Abrinq em parceria com o Fórum Nacional de Prevenção da Violência na Infância (2023) revelou que uma em cada quatro crianças brasileiras vive em lares onde há histórico de violência física ou psicológica. Em 70% das denúncias feitas ao Disque 100 por maus-tratos a crianças, os agressores são os próprios responsáveis legais. Quando o afeto se converte em violência silenciosa, o aprendizado emocional que se instala não é o amor, mas o medo e a insegurança.
A naturalização da família como núcleo afetivo idealizado também esconde as desigualdades de gênero na distribuição do cuidado. Pesquisa do IBGE (2023) sobre o uso do tempo no Brasil aponta que as mulheres dedicam, em média, o dobro de horas semanais ao cuidado de filhos e parentes doentes em comparação aos homens. A romantização do “amor de mãe” encobre a sobrecarga psíquica, física e emocional imposta às mulheres, sobretudo àquelas em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Ainda que experiências familiares positivas existam e sejam fonte de desenvolvimento afetivo, é um erro político e epistemológico universalizar essa narrativa. O Relatório Mundial sobre a Violência contra Crianças (ONU, 2022) adverte que a reprodução da família como lugar incondicional de amor desmobiliza políticas públicas voltadas à proteção da infância e normaliza abusos que ocorrem dentro de casa. O relatório recomenda que os governos tratem o ambiente familiar como espaço de possível risco e não apenas de afeto presumido.
A pedagogia do amor, portanto, não nasce espontaneamente entre paredes domésticas. Ela exige condições materiais, redes de apoio, presença afetiva e ausência de medo. Quando esses elementos estão ausentes, o que se ensina na “primeira escola” não é amor, mas sobrevivência emocional. O mito da família como lugar de aprendizado do afeto desconsidera a pluralidade das experiências familiares e, pior, silencia as dores que ali se perpetuam em nome da harmonia aparente.