Abdias Nascimento e os sortilégios do cárcere
Escrito entre as paredes do Carandiru em 1943, Submundo: cadernos de um penitenciário foi publicado pela primeira vez em 2023, revelando um Abdias Nascimento jovem, em formação, que transforma a experiência do cárcere em laboratório ético-estético. Preso por se recusar a cumprir uma ordem militar, o soldado negro recusa a submissão e inicia um projeto de escrita, encenação e organização coletiva que, mais tarde, influenciaria a fundação do Teatro Experimental do Negro. O livro é um testemunho vívido das engrenagens de desumanização do sistema prisional brasileiro, mas também da criação de mundos possíveis a partir da dor.
Publicada 30 anos após o Massacre do Carandiru e à luz dos debates sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, a obra tensiona a memória nacional: se a modernidade exaltava o progresso nos palcos brancos, silenciava os corpos negros encarcerados. Abdias, no entanto, escreve desde o subterrâneo. Com lirismo e crítica, entrelaça narrativas pessoais, entrevistas com detentos e poemas coletivos. Sua linguagem dramatúrgica dá forma à brutalidade, mas também recupera subjetividades apagadas, como no episódio em que um pardal aleijado lhe serve de companhia durante os dias mais escuros da prisão.
A obra realiza uma leitura minuciosa dos dispositivos de controle estatal: celas insalubres, violência sexualizada, isolamento, diagnósticos manipulados e precariedade jurídica. Abdias escancara a colonialidade do poder que estrutura o encarceramento de corpos negros, pobres e masculinos. Mas sua escrita não se limita à denúncia. Ao nomear os companheiros, registrar suas falas e encenar sua dor, ele transforma a prisão em palco político e poético.
Submundo conecta-se a uma tradição transatlântica de escritos carcerários, de Lima Barreto a Assata Shakur, e insere Abdias como fundador de uma estética negra insurgente no Brasil. A publicação póstuma do manuscrito é mais que uma homenagem: é a restituição de uma voz que, mesmo presa, já projetava um outro país possível.
O autor
Abdias Nascimento foi um dos mais importantes pensadores e ativistas negros do Brasil, atuando como poeta, dramaturgo, artista visual, político e intelectual pan-africanista. Fundador do Teatro Experimental do Negro e do Museu de Arte Negra, lutou por uma estética e uma política de valorização da população negra em todas as esferas sociais. Teve sua trajetória marcada pelo enfrentamento direto ao racismo institucional, tendo sido preso, exilado e, mais tarde, eleito deputado e senador. Criador do conceito de ações afirmativas no Congresso, Abdias deixou um legado que conecta arte, política e ancestralidade, afirmando a dignidade negra como projeto de nação.