‘Trote’, a casa poética de Jheferson Rosa
Autor convida o leitor a adentrar em um universo poético marcado pelo trânsito, pela ambiguidade e pela violência dos espaços de afeto
“Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é”. A frase de Clarice Lispector abre as portas para Trote, segundo livro de poesia de Jheferson Rosa, goiano de 26 anos. Longe de qualquer estabilidade, a casa que se constrói em seus versos é móvel, fraturada, ambígua, e talvez, por isso mesmo, real. Publicado pela editora Cachalote, o livro parte de experiências íntimas para erguer um projeto literário que pensa a linguagem como espaço habitável, mas também como zona de risco.
A obra marca sua segunda incursão na poesia, após a publicação de Avião de Papel em 2021. Dessa vez, o escritor goiano convida o leitor a explorar um universo poético marcado pelo trânsito, pela ambiguidade e pela violência silenciosa que reside nos espaços de afeto. Não se trata de uma casa definida e segura, mas de um lugar em constante movimento, cujas paredes escondem segredos e enganos.
O autor conta que Trote não foi um livro planejado. “Foi uma espécie de pesquisa que fui fazendo sem saber muito bem onde ia chegar, o título surgiu dessa forma também, no trajeto.” Ele explica que “essa palavra tanto poderia significar o engano do ‘fazer um trote’, quanto o movimento do ‘trotar’ dos cavalos”.
Após a conclusão da obra, ele realizou um processo de performance, guiado pela frase de Gabriel Joaquim dos Santos, idealizador da Casa da Flor: “Esta casa não é uma casa, isto é uma história”. Rosa percorreu o mapa de Goiânia, passando por todas as casas em que morou, fotografando-as uma a uma. “Essas fotografias também estão presentes no livro”, revela.
Da autobiografia à ficção
A primeira parte do livro, intitulada .trinta-e-oito, é um ponto de partida revelador. Nela, o autor parece se debruçar sobre episódios autobiográficos, explorando as relações entre violência e afeto em espaços íntimos. Ele apresenta situações concretas, como a visita de seu primo, que o acorda em uma manhã chuvosa e aponta uma arma em seus olhos, dizendo que é apenas uma ‘brincadeira’.
Essas cenas reais, carregadas de tensão e ambiguidade, servem como ponto de partida para uma investigação mais ampla sobre os limites entre a memória e a ficção. “Onde na memória se guarda aquilo que fomos?”, questiona Rosa, sugerindo que a própria realidade pode ser redefinida pela maneira como a narramos.
Ao longo do livro, ele vincula objetos de afeto e violência, num esforço de compreender onde podemos nos abrigar quando a própria casa se torna um lugar de perigo. “A resposta para essa questão talvez esteja na ficção, e na maneira que ela nos permite a recriar esses ambientes da memória, ou seja, da realidade”, conta.
Um fluxo de consciência poética
O autor descreve seu processo criativo como um fluxo de consciência que conecta fatos autobiográficos, referências e ficção. Ele explica: “Deixei que a memória fosse fazendo o trabalho de associação livremente de uma coisa a outra, para depois sentar e revisar o que fazia sentido ou não para ser exteriorizado”.
Essa abordagem resulta em uma leitura que flui como um rio, com versos que se encadeiam de maneira orgânica, embora não linear. O leitor é convidado a acompanhar esse movimento, sentindo como se estivesse dentro da própria mente do poeta, testemunhando o processo de criação.
Rosa organizou a obra em capítulos que dividem estudos específicos, criando uma espécie de argumento que vai sendo desenvolvido ao longo do livro. “Mas a sequência disso foi sendo feita naturalmente, assim que percebia que a associação pedia um novo ‘bloco’ eu saltava a página para separar, porém um ‘capítulo’ vai puxando o outro, linearmente”, explica.
Arma-palavra e moradia poética
Um dos aspectos mais intrigantes da obra é a maneira como se articula a metáfora da arma-palavra e a ideia de moradia poética. “O pensamento que me rodeava era: ‘Se a realidade pode nos ferir e afetar nossa ficção, será que não podemos fazer o caminho inverso também e ferir a realidade com o que criamos?’. Sendo assim, trabalhei essa ideia de que a palavra também poderia ser uma arma, o tempo todo no livro trabalho essa imagem, deixo até a reflexão de que o ‘leitor ideal’ talvez seja aquele a quem podemos ferir com nosso texto”, comenta.
A ideia de moradia poética expande essa metáfora, sugerindo que a ficção pode se constituir como espaço físico, casa inventada e habitada. “Para além dessa imagem, pensando na ideia de uma ‘moradia poética’, isso caberia na visão de que a ficção além de poder ferir a realidade, ela pode também moldá-la, ou seja, estar na ficção enquanto espaço físico aqui também passa a ser possível, e essas moradias vão sendo inventadas, habitadas e abandonadas durante o percurso do Trote”, diz o autor.
Expectativas
Sobre o impacto do livro, o autor prefere manter as expectativas baixas. Ele reconhece que o caráter experimental da obra, que dialoga com a ideia de um texto nômade e atravessa as fronteiras entre gêneros literários, pode representar um desafio para os leitores. Ainda assim, acredita que essa tendência de obras que interagem com a cultura contemporânea tende a se fortalecer.
Trecho de ‘segunda bala’
no dia 5 de dezembro
me proponho a encontrar
a chuva em ficção, quero escrever um poema
são pedro é quem escreve
a chuva
ele abre as comportas do
céu e deixa que os cavalos
saiam em trote
os cavalos no telhado
o barulho da chuva
são a ficção deleno dia 5 de dezembro me
proponho então
a encontrar o trote em ficção, quero escrever um poema,
mas o trote de verdade não
me deixa pensar
então que são pedro me escute retire os cavalos do pasto
quero adestrá-los onde o poema habita,
ele me ouve, ele fecha as
comportas, ele diz
é o silêncio
quem está caindo do céu
agora
então as comportas do poema se abremSiga o Canal do Jornal O Hoje e receba as principais notícias do dia direto no seu WhatsApp! Canal do Jornal O Hoje.