O Hoje, O Melhor Conteúdo Online e Impresso, Notícias, Goiânia, Goiás Brasil e do Mundo - Skip to main content

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
JUSTIÇA FEDERAL

Decisão que favorece primo de Caiado derruba casas de 32 famílias em Santo Antônio do Descoberto

Suspeitas de irregularidades processuais e falsificação de documentos permeiam a ação, que foi alvo de federalização

Eduarda Leitepor Eduarda Leite em 7 de agosto de 2025
As famílias de Antinha de Baixo ocupam a região há mais de 80 anos Foto: Reprodução/Site Mauro Rubem
As famílias de Antinha de Baixo ocupam a região há mais de 80 anos Foto: Reprodução/Site Mauro Rubem

Nesta segunda (4), mais de 1,6 mil pessoas foram obrigadas a deixar seus lares. Cerca de 400 famílias residentes em Antinha de Baixo, em Santo Antônio do Descoberto (GO), no Entorno do Distrito Federal, foram notificadas de que deveriam desocupar terras que seriam herdadas pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO), Breno Boss Caiado, primo do governador Ronaldo Caiado (UB). 

A ação de retirada dos moradores da região, por meio de cumprimento de ordem de reintegração de posse, durou até terça-feira (5). Segundo relatos de moradores, 32 famílias tiveram suas casas demolidas. O TJ-GO havia ordenado o cumprimento da medida. Mas, na noite de terça-feira (5), o caso foi federalizado. A Justiça Federal acatou pedido do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que alegou que a área é, na verdade, um território quilombola. 

O processo que solicita a reintegração de posse do terreno existe desde 1945. Sem solução judicial definitiva sobre a disputa territorial, as famílias de Antinha de Baixo ocupam a região há mais de 80 anos. Apesar das fortes raízes dos moradores com a área, em 28 de julho deste ano, a juíza Ailime Virgínia Martins, da 1ª Vara Cível da comarca de Santo Antônio do Descoberto, expediu um mandado de desocupação compulsória dos imóveis construídos no local. Apenas 16 famílias vulneráveis das cerca de 400 que ali moram foram isentas da ação.

Com a decisão em mãos, o oficial de Justiça designado para cumprir a ordem judicial pediu reforço à Polícia Militar (PM-GO), Corpo de Bombeiros (CBM-GO) e Conselho Tutelar de Santo Antônio do Descoberto para iniciar a reintegração de posse. A magistrada afirmou, na sentença, que a medida foi tomada “a fim de auxiliá-lo no cumprimento do ato, bem como arrombando-se cômodos, móveis e obstáculos, caso torne-se necessário”.

Momentos de terror

Reginiele da Silva Freitas é dona de casa, e mora na comunidade com a mãe e o filho de 12 anos. A mulher declara que viveu momentos de horror na primeira semana de agosto, quando esteve diante da possibilidade de ficar sem lar. “Eles não nos respeitavam, todos muito ignorantes, agressivos, uns capangas encapuzados e armados, era uma situação de terror”, declara a mulher, em entrevista exclusiva ao O HOJE.

Após os eventos do primeiro dia da ação, na segunda-feira (4), a família de Reginiele começou a organizar a mudança, com a retirada dos móveis da casa. Na terça-feira (5), a mulher avistou, de longe, uma fila de viaturas policiais. “Eles estavam ali para derrubar a casa da minha mãe”, compartilha. 

“O oficial de Justiça estava junto, tirando nossa posse e entregando para os Caiados. Depois que eles pegavam a posse, já vinham com a pá mecânica para derrubar”, lembra a moradora. A mulher teria solicitado ao oficial de Justiça um pouco mais de tempo para que conseguisse terminar de retirar seus móveis. “Depois que eu disse isso, ele falou que, infelizmente, só ia confirmar qual casa era a certa e já ia mandar derrubar”, conta.

Antes que a demolição começasse, chegou a notícia de que o processo foi federalizado. O redirecionamento da ação ocorreu após documentos apontarem que a área seria remanescente de terras quilombolas, o que impediu a continuidade da ação. “Por enquanto, ganhamos a causa. Graças a Deus não chegaram a derrubar a casa da minha mãe, mas 32 famílias tiveram suas casas derrubadas”, relata Reginiele. 

 

Suposta ligação da família Caiado

Em 1945, um antigo morador de Antinha de Baixo, Francisco Apolinário Viana, solicitou a separação das terras junto ao TJ-GO. A ambição era de assegurar sua parte do terreno. Porém, 40 anos depois, três pessoas ingressaram no mesmo processo, sob a alegação de serem herdeiros de terras no mesmo território. Os envolvidos são Luiz Soares de Araújo, Raul Alves de Andrade Coelho e Maria Paulina Boss, esposa de Emival Ramos Caiado, tio do governador do Estado.

Logo após, em 1990, o trio obteve decisão favorável para tomar posse da área. Mesmo com isso, o caso continuou em julgamento e os pedidos de desocupação começaram em 2014. Na época, os moradores buscaram recursos judiciais para evitar a saída do local. Posteriormente, Breno Boss Caiado, primo de Ronaldo Caiado, atuou diretamente no caso como advogado. 

Ainda em 2023, antes de deixar o processo, Breno Caiado apresentou recurso ao TJ-GO, no qual alegou que as ações de divisão das terras e de usucapião (forma de adquirir o imóvel por uso prolongado) impetradas pelos atuais ocupantes continham irregularidades.

Suspeitas de fraude

O presidente da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Antinha de Baixo (Asprocab), Francisco Porfírio da Silva, também é advogado dos moradores da comunidade. Segundo Porfírio, uma das principais irregularidades no processo é a de que Breno Caiado, na época em que atuava no caso como advogado, teria manipulado documentos para comprovar a suposta propriedade nas terras.

“O objetivo dessa ação é grilar as terras. O Breno Caiado nunca apresentou um documento de escritura referente a algumas áreas lá, e até hoje não apresentou à juíza, que está expedindo mandado de reintegração de posse sem a pessoa ter escritura”, declara o líder da associação dos moradores. 

De acordo com Porfírio, a violência fundiária persiste desde 2014. “Em 2022, nós fundamos a Asprocab visando combater esse tipo de conduta. Tem, inclusive, um decreto da Fundação Palmares dizendo que lá era área quilombola, e o pessoal foi lá e derrubou a casa mais antiga que nós tínhamos na comunidade”, conta o advogado. 

O presidente da associação declara, em entrevista exclusiva ao O HOJE, que o Ministério Público não prestou apoio aos moradores durante o processo. “A única vez que o MP-GO esteve presente foi para falar que não tem interesse no processo”, declara Porfírio.

Incra pede federalização do caso Antinha de Baixo

A comunidade de Antinha de Baixo foi oficialmente reconhecida como quilombola pela Fundação Cultural Palmares em 1º de agosto de 2025. O Incra iniciou o processo de regularização fundiária com base em documentos apresentados pela associação local que comprovam a ocupação tradicional da área. Isso impede legalmente a desapropriação por terceiros.

Diante disso, a Procuradoria Federal do Incra solicitou à Advocacia-Geral da União (AGU) que atuasse como assistente dos moradores no processo judicial, pedisse a suspensão do despejo e a transferência do caso para a Justiça Federal, solicitação que foi atendida na terça-feira (5). Segundo o Incra, como o território está em processo formal de titulação quilombola, a competência para julgar a causa é exclusivamente federal. A continuidade da reintegração pela Justiça Estadual, portanto, pode levar à nulidade dos atos processuais.

O deputado estadual Mauro Rubem (PT) criticou duramente o caso e acusou a família Caiado de grilagem e de promover despejo forçado com documentos suspeitos e desrespeito aos direitos humanos.

Declarações oficiais

O TJ-GO afirmou que não há demarcação oficial de território quilombola em Antinha de Baixo e considerou a certificação como apenas uma autodeclaração dos moradores. No entanto, a Fundação Cultural Palmares emitiu, em 1º de agosto de 2025, a Portaria nº 209, que reconhece a comunidade como remanescente de quilombo, ato que, com apoio do Incra, fundamenta a necessidade de transferência do caso para a Justiça Federal.

Já o MP-GO declarou que o caso refere-se à execução de uma sentença de divisão de terras ajuizada em 1993. Segundo o órgão, não há mais possibilidade de reavaliar o mérito da decisão. Os herdeiros de três falecidos, Maria Paulina Boss, Raul Alves de Andrade Coelho e Luiz Soares de Araújo, querem que a sentença do TJ-GO seja cumprida, com a demarcação dos limites e da divisão da Fazenda Antinha de Baixo.

O MP-GO reforçou que sua atuação é limitada à fase de execução da sentença e que não há espaço legal para novos pedidos ou reanálise do caso. A Justiça Federal foi procurada para comentar, mas não respondeu até o fechamento desta edição

Siga o Canal do Jornal O Hoje e receba as principais notícias do dia direto no seu WhatsApp! Canal do Jornal O Hoje.
Veja também