Cultura da resistência ainda afasta policiais do cuidado psicológico
Estresse, pressão e risco constante fazem parte da rotina policial e podem causar transtornos que acompanham os agentes até depois da aposentadoria
O trabalho policial é marcado por riscos, pressões e situações de extremo estresse. E, mesmo com a recente queda nos índices de mortes de policiais em confrontos e por suicídio, especialistas alertam: a saúde mental desses profissionais continua sendo uma questão urgente e pouco tratada no Brasil.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram que, entre 2023 e 2024, as mortes em confronto diminuíram 4,5%, passando de 178 para 170 casos. Já os suicídios caíram 8%, de 137 para 126. Apesar da redução, a maioria das mortes ainda acontece fora do horário de serviço. Segundo os registros, 72,9% dos policiais que morreram em confrontos não estavam em serviço no momento da ocorrência.
Para o advogado especialista em direito militar, Dr. Marcelo Almeida, os números reforçam a necessidade de medidas estruturais de prevenção. “Muito se fala que as corporações têm serviço próprio de saúde, mas, em muitos estados, há apenas dois ou três psiquiatras para atender milhares de policiais”, destaca. Ele explica que a sobrecarga de trabalho, somada a dificuldades financeiras, agrava os transtornos psicológicos.
Segundo Almeida, convênios com clínicas especializadas não são suficientes para atender à demanda. Casos de policiais com transtornos mentais, incluindo situações relacionadas ao endividamento, aparecem com frequência nas manchetes. “O país vive um momento difícil na área financeira e os policiais também sofrem essa pressão, o que pode levar até ao suicídio”, acrescenta.
Outro ponto criticado é o modelo de afastamento para tratamento. Em geral, o policial é retirado das ruas por 10 a 30 dias, mas, depois, retorna à mesma rotina sem acompanhamento contínuo. “Essa é uma medida paliativa. Sem tratar a raiz, ele volta aos mesmos gatilhos que o adoeceram”, afirma Almeida. Para ele, é preciso investir em programas permanentes, com equipes multidisciplinares e acompanhamento de longo prazo.
Transtornos comuns e a necessidade de suporte contínuo para a saúde mental policial
A psicóloga Sara Cristina, explica que os problemas psicológicos entre policiais são variados. “Os mais comuns são Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Tept), depressão, ansiedade generalizada e também transtornos relacionados ao uso de substâncias. É muito comum observar ainda casos de esgotamento emocional e burnout, especialmente entre aqueles expostos constantemente à violência”, explica.
Ela aponta que a própria rotina da profissão é um gatilho. “A exposição constante à violência, o risco de morte, as situações traumáticas, a carga horária excessiva e a pressão institucional são fatores diretos. O medo de falhar ou ser punido por uma decisão também cria um ambiente estressante e traumático.”
Apesar disso, a busca por ajuda ainda é baixa. “Em geral, o policial procura apoio só em momentos críticos, após colapsos emocionais, ideação suicida ou quando o sofrimento já interfere no trabalho e na vida pessoal. Existe resistência e medo de estigmatização, porque a cultura policial valoriza a força e a resistência emocional. Mas, felizmente, estamos vivendo um cenário de maior psicoeducação, e isso tem contribuído para que mais profissionais procurem atendimento”, diz a psicóloga.
Sara Cristina destaca que, quando existe suporte psicológico, ele é limitado em estrutura e recursos. “Muitos serviços estão mais voltados à avaliação do policial do que ao acolhimento terapêutico contínuo. Falta humanização e políticas institucionais mais efetivas.”
Ela defende equipes permanentes de saúde mental, campanhas de conscientização, capacitação de gestores para lidar com sofrimento psíquico e incentivo ao autocuidado. “Cuidar da saúde mental precisa ser rotina, não apenas resposta em momentos de crise.”
O estresse acumulado também afeta a vida pessoal. “Ele pode gerar afastamento emocional, irritabilidade, agressividade e dificuldade em manter vínculos afetivos saudáveis”, acrescenta.
Aposentadoria: transição exige preparo emocional e psicológico
Para muitos policiais, a chegada da aposentadoria traz novos problemas psicológicos. “Ela pode gerar sentimentos de vazio, perda de identidade e desorientação. Muitos viveram a profissão como missão ou estilo de vida, e ao se desligarem, sentem-se sem propósito. Isso pode levar à depressão ou ao isolamento social”, explica a psicóloga.
Sara Cristina defende que o preparo para a aposentadoria deve começar ainda durante a carreira. “É fundamental construir uma identidade além da função policial, investir em projetos pessoais, redes de apoio e preparo financeiro e psicológico para a transição.”
Entre as medidas preventivas, ela sugere atendimento psicológico regular, mesmo sem sintomas agudos, programas de saúde mental dentro das corporações e incentivo a atividades físicas e de lazer. “O policial é um ser humano como qualquer outro, com limites e necessidades emocionais. Precisamos desconstruir o tabu em torno da vulnerabilidade”, finaliza.