Capital aprova lei que obriga uso de focinheira e guia curta em ‘raças perigosas’
Medida surge após casos recentes e reforça debate sobre responsabilidade dos tutores, legislação vigente e bem-estar anim
Em menos de um mês, dois ataques violentos envolvendo cães da raça pitbull em Itumbiara, no sul de Goiás, chocaram o Estado e reacenderam o debate sobre segurança no convívio com animais de grande porte. O caso mais recente ocorreu em 23 de agosto, quando um menino de sete anos foi atacado ao tentar resgatar uma pipa no quintal da vizinha. O cão escapou e avançou contra a criança, que foi socorrida com ferimentos graves. Dois homens que tentaram conter o animal também ficaram feridos.
Dias antes, em 2 de agosto, uma tragédia ainda maior comoveu o município. Enzo Gabriel, de quatro anos, morreu após ser atacado pelo pitbull da própria família, dentro de casa. O menino tentava brincar com o cão no momento em que ele se alimentava. A mãe da criança, Sabrina, chegou a ser presa sob acusação de abandono de incapaz, já que os filhos estavam sozinhos. A decisão judicial que a libertou veio tarde demais: o enterro do filho ocorreu sem sua presença.
Em meio à comoção, a Câmara Municipal de Goiânia aprovou nesta quinta-feira, 4 de setembro, em segunda e última votação, o Projeto de Lei nº 285/2025, de autoria do vereador Ronilson Reis (sem partido). A proposta, que aguarda sanção do Executivo, torna obrigatório o uso de focinheira, guia curta de até dois metros, coleira e enforcador na condução de cães de grande porte e raças consideradas potencialmente perigosas em locais públicos.
A lista inclui pitbulls, rottweilers, mastins napolitanos, filas brasileiros, dobermans, pastores alemães, american staffordshire terriers, bull terriers, bulldogs e boxers, além de qualquer animal com histórico de agressividade ou peso acima de 25 quilos. O descumprimento pode gerar multas de 5 a 5.000 Unidades Fiscais de Goiânia (UFGs), valor que dobra em caso de reincidência. A lei também prevê apreensão do animal e responsabilização civil e penal do tutor em situações graves.
Estão isentos da obrigatoriedade os cães de órgãos de segurança pública em serviço e também os cães-guia, utilizados por pessoas com deficiência visual. Segundo o autor do projeto, a medida tem caráter preventivo. “O objetivo é evitar acidentes e reforçar a segurança, especialmente de crianças, idosos e pessoas em situação de vulnerabilidade. É uma questão de responsabilidade e de cuidado com a nossa cidade”, afirmou Ronilson Reis.
A legislação municipal não é inédita. A Lei Complementar nº 108/2002 já estabelecia a exigência de focinheira para cães de médio e grande porte, enquanto a Lei Estadual nº 11.531/2003 também traz regras sobre condução responsável de animais. As penalidades vão de multas que ultrapassam R$ 5 mil a indiciamentos por homicídio culposo em casos fatais.
Educação e responsabilidade dos tutores são chave para prevenir ataques
Para o adestrador e especialista em comportamento canino Marcelo Araújo, a lei tem caráter preventivo, mas não deve ser vista como solução isolada. “O equipamento de contenção ajuda, mas o que realmente previne ataques é a educação do cão e a consciência do tutor. Um animal mal socializado ou criado em ambiente de tensão pode se tornar imprevisível, independentemente da raça”, explica.
Segundo ele, o bem-estar do animal também deve ser considerado. “A focinheira, se usada corretamente, não causa dor nem desconforto. Mas quando o tutor a utiliza apenas como forma de controle punitivo, o cão associa a experiência a algo negativo, o que pode aumentar a reatividade. O ideal é adaptar o animal desde filhote e associar a focinheira a momentos positivos”, afirma.
Marcelo ressalta ainda que a responsabilidade vai além do acessório. “Treinamento de obediência básica, gasto de energia com passeios diários e estímulos mentais são fundamentais. Muitos acidentes acontecem porque o tutor não lê os sinais que o cão dá — rosnados, rigidez corporal, fixação do olhar. Esses alertas são ignorados e acabam culminando em ataques.”
Ele defende que leis sejam acompanhadas de campanhas educativas. “Multas têm efeito, mas informação transforma comportamento. A população precisa entender que adotar um cão de grande porte exige preparo, disciplina e comprometimento. Não é apenas dar comida e água, é investir em convivência saudável e segura.”
A expectativa é que a sanção do projeto em Goiânia traga regras mais rígidas para a circulação de cães considerados perigosos, reforçando a segurança em locais públicos.
Raças de grande porte exigem socialização precoce e tutores preparados
Embora pitbulls e outras raças de grande porte frequentemente sejam associadas a ataques violentos, especialistas reforçam que a agressividade não é inerente ao animal, mas consequência de manejo inadequado e falta de socialização.
A médica-veterinária e especialista em comportamento animal Gabriella Canedo explica que o período entre o primeiro e o quarto mês de vida é crucial para a formação do temperamento. Quando o filhote não tem contato com pessoas diferentes, sons, ambientes variados e outros cães, ele cresce mais reativo e medroso, o medo é um dos principais gatilhos para comportamentos agressivos.
O uso de punições físicas ou verbais também é apontado como fator de risco. “Bater, gritar, isolar ou ameaçar o animal cria um ambiente hostil. Isso não educa, apenas gera medo, estresse e reatividade. Um cão reativo é imprevisível e pode atacar como forma de defesa”, alerta.
Segundo a veterinária, a humanização excessiva também traz problemas, já que muitos tratam o cão como uma criança e não estabelecem limites, o que pode gerar ansiedade de separação, agressividade ou compulsões. Os cães precisam de rotina, estímulos físicos e mentais, e de um tutor que saiba impor regras com equilíbrio.
Em relação aos pitbulls, Gabriella ressalta que a raça não é geneticamente agressiva, mas tem características físicas potentes, fruto de seleção histórica para atividades de briga. “Eles são extremamente carinhosos quando bem tratados, mas exigem manejo adequado, socialização precoce, gasto de energia e um tutor presente.”
Para ela, casos de ataques dentro da própria casa refletem falhas de manejo. Já que muitos tutores não percebem sinais claros de desconforto do animal e mantêm crianças em situações de risco. A profissional alerta que cuidar de um cão vai além de oferecer comida e abrigo: é um compromisso de responsabilidade, segurança e respeito à natureza do animal.