O Hoje, O Melhor Conteúdo Online e Impresso, Notícias, Goiânia, Goiás Brasil e do Mundo - Skip to main content

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
JUSTIÇA

Herança ou usucapião? Caso gera debate sobre posse de imóveis entre irmãos

Casos de posse exclusiva de bens herdados mostram como a usucapião pode transferir propriedade mesmo entre irmãos, o que exige comprovação de posse

Caroline Gonçalvespor Caroline Gonçalves em 13 de setembro de 2025
9 abre 2 Freepik
Imóveis deixados como herança podem acabar em disputas judiciais quando não há acordo entre os herdeiros Foto: Freepik

Um caso que ganhou repercussão recente chamou a atenção para um tema delicado dentro de muitas famílias brasileiras: a posse de imóveis herdados. Após o falecimento dos pais, três irmãos herdaram juntos a casa da família. Mas apenas um deles ficou morando no imóvel. Anos depois, ele acionou a Justiça e conseguiu, sozinho, o direito de ser o único dono do imóvel,  por meio da usucapião.

 

A decisão gerou surpresa e debate. Afinal, como é possível que um bem herdado por todos os irmãos acabe ficando só com um? A resposta está na usucapião, um instrumento legal que permite a aquisição de um imóvel pela posse contínua e sem oposição, por um período mínimo de cinco anos.

 

De acordo com o advogado João Victor Duarte Salgado, especialista em direito imobiliário, o caso é mais comum do que se imagina. “O filho ficou morando no imóvel, pagou os impostos, manteve o bem, fez melhorias e ele morou como se fosse dono, sem oposição dos irmãos. Então, nesse período que ele ficou morando no imóvel, ele passou a ter o período aquisitivo de usucapião”, explica.

 

Segundo a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade, quem ocupa imóvel urbano de até 250 m², de forma pacífica, contínua, por cinco anos, e com finalidade de moradia, pode pedir usucapião, desde que não possua outro imóvel. Esse é o chamado usucapião urbano. Mas mesmo em contextos familiares, esse pedido pode ser feito, desde que haja comprovação de posse exclusiva. 

 

O advogado especialista em direito civil, João Gabriel Coutinho, informa que “sim, é possível, em situações excepcionais. A usucapião, proposta por herdeiro, somente torna-se possível se conseguir demonstrar que exerceu posse exclusiva, contínua e com intenção de ser dono único, afastando os demais herdeiros da utilização do bem”, explica.

 

Ou seja, não basta apenas morar no imóvel. É preciso comprovar que os outros irmãos deixaram de exercer qualquer tipo de controle ou uso sobre o bem, e que o herdeiro agiu como único proprietário, arcando com despesas, impostos e manutenção.

 

De acordo com João Victor, muitas famílias enfrentam esse tipo de disputa porque não formalizam acordos. “É preciso ter um contrato onde os herdeiros estão cedendo gratuitamente o uso de suas respectivas partes no imóvel para o outro irmão, pelo tempo que for necessário ou da forma que for conveniente. Pode ser um comodato, pode ser uma cessão parcial gratuita ou até um contrato de locação. Acordo verbal, nem entre irmãos, não vale. A ideia é colocar tudo no papel”, alerta.

 

Apesar de decisões favoráveis a herdeiros em ações de usucapião, os tribunais ainda tratam esse tipo de caso com cautela. “A jurisprudência é bastante restritiva. Os tribunais entendem que, em regra, o uso do imóvel herdado por um dos herdeiros não configura posse exclusiva, mas posse em nome de todos”, explica Coutinho. Ainda assim, quando há provas de que os demais foram excluídos do uso por muitos anos, os pedidos de usucapião têm sido aceitos.

 

E o que fazer se um herdeiro descobre que o irmão entrou com pedido de usucapião? A recomendação é contestar judicialmente, apresentando provas de que o bem sempre foi considerado comum. “Documentos de despesas compartilhadas, registros de inventário ou simples manifestações de discordância já são suficientes para impedir a configuração da posse exclusiva”, destaca João Gabriel.

 

Outra medida preventiva importante é formalizar o inventário logo após o falecimento dos pais. Assim, evita-se que alguém use a informalidade como argumento para obter a propriedade por usucapião. “A melhor forma de prevenção é abrir inventário, formalizar a partilha e regularizar a situação registral dos bens. Se um dos herdeiros for ocupar o imóvel, é preciso deixar claro que ele está apenas usando, e não sendo o único dono”, afirma Coutinho.

 

 

 

Imóvel é regularizado mesmo após morte da dona devido a falhas na escritura

 

Um caso curioso que envolve usucapião mostra como essa ferramenta pode servir não só para garantir o direito à moradia, mas também para regularizar um imóvel que não pode ser registrado de forma tradicional. Quem conta a história é o advogado João Gabriel Coutinho, que acompanhou a ação até sua sentença final, mesmo com a morte da autora durante o processo.

 

Segundo o advogado, a cliente comprou o imóvel em 2011 por meio de um contrato de compra e venda particular. Após o pagamento total, foi lavrada uma escritura pública, conforme exige a lei. No entanto, ao tentar registrar o imóvel no cartório, surgiram diversos obstáculos. “A escritura estava mal elaborada. Faltavam dados importantes como nomes completos e informações básicas. Além disso, havia uma cadeia de repasses anteriores feita de maneira informal, o que causou uma verdadeira confusão registral”, explica João Gabriel.

Com o passar dos anos, tornou-se impossível corrigir os erros da escritura. Mesmo assim, a cliente continuou vivendo no imóvel, pagando IPTU, contas e cuidando do local como se fosse a verdadeira dona. Diante dessa situação, a saída encontrada foi entrar com uma ação de usucapião com base em justo título. Esse tipo de usucapião pode ser pedido após 10 anos de posse, desde que haja algum documento que comprove a origem da propriedade, mesmo que esse documento não sirva para registro oficial, como foi o caso da escritura irregular.

A ação foi protocolada em 2021. Mas no início de 2024, a cliente faleceu, antes que o processo fosse finalizado. Apesar disso, a Justiça reconheceu a posse qualificada e a sentença saiu nos meses seguintes, consolidando a propriedade em nome dela. 

 

“A sentença reconheceu a propriedade em nome da falecida, e agora o próximo passo é abrir um inventário para que esse imóvel seja transferido aos herdeiros”, esclarece o advogado.

O caso chama a atenção por mostrar que a regularização de imóveis por usucapião não se limita a situações informais ou de ocupação. Muitas vezes, a compra é legítima, mas por falhas documentais ou erros cartoriais, o registro se torna inviável. 

 

“É um exemplo de como o sistema jurídico pode corrigir distorções do passado e garantir o direito à propriedade, mesmo após o falecimento do ocupante”, conclui João Gabriel

Siga o Canal do Jornal O Hoje e receba as principais notícias do dia direto no seu WhatsApp! Canal do Jornal O Hoje.
Veja também