Orfeu desce ao submundo no palco do Basileu França
Ópera de Gluck ganha montagem em Goiânia com orquestra, coro e dança em leitura que une mito, tragédia e resistência do amor
O mito de Orfeu atravessa séculos como metáfora da resistência do amor diante da morte. E agora ele chega ao palco do Teatro Basileu França, em Goiânia, com a estreia da ópera Orfeo ed Euridice, de Christoph Willibald Gluck, no dia 3 de outubro, às 20h, com reapresentação no dia 4, também às 20h, e no dia 5, às 19h. Considerada uma das obras centrais do repertório lírico ocidental, a montagem será apresentada em versão de fôlego, com 55 músicos da Orquestra Sinfônica Juvenil Pedro Ludovico Teixeira, 28 integrantes do Ópera Estúdio Basileu França, 15 bailarinos da Cia Jovem Basileu França e direção artística de Eduardo Machado, que divide a condução musical com Jackson Guedes.
“Christoph W. Gluck, que viveu de 1714 a 1787, foi um dos mais importantes compositores de seu tempo. Pode ser considerado o grande reformador da ópera clássica por equilibrar a importância da música e da ação dramática, e sua ópera Orfeo ed Euridice é a obra mais representativa dessa tendência”, avalia Machado. “Para que a montagem esteja à altura de tamanha grandiosidade, nós trazemos nossos alunos de altas habilidades das classes de canto, de dança e da Orquestra Sinfônica Juvenil Pedro Ludovico Teixeira”, completa.
Música como drama
Para o maestro Erick Félix, que rege a orquestra, o desafio vai além da técnica. “A ópera é uma forma complexa e exigente de arte teatral, que combina música e drama de forma integral, exigindo que o maestro e o grupo orquestral se adequem à atmosfera da obra e possuem grande resistência física para longas performances. A coesão e a expressão artística da produção dependem dos solistas, coristas e bailarinos, mas também dos músicos da orquestra, para que tudo saia de uma forma harmoniosa”, analisa.
Simone Malta, coordenadora de Dança da EFG Basileu França, ressalta que a coreografia foi pensada como parte da dramaturgia. “ A dança não aparece como um número à parte, mas como parte fundamental da dramaturgia da ópera, acompanhando e ampliando o discurso artístico”, afirma. “Aqui, o balé dialoga diretamente com o canto lírico, com a música orquestral, com a cenografia e a encenação, compondo um todo maior. Dessa forma, a dança assume um caráter dramatúrgico, participando ativamente da narrativa e fortalecendo a experiência cênica”.
Vozes que encarnam mitos
No centro da montagem está Orfeu, vivido em dois momentos distintos. Nos dias 3 e 5, o papel cabe à mezzo-soprano Rafaela Duria, premiada em concursos nacionais. “O corpo dele, o jeito dele andar, os acentos das frases, toda a postura dele no palco é diferente. A minha pesquisa do personagem partiu do arquétipo de herói da mitologia clássica que caracteriza Orfeo, a partir dessa visão de homem ideal clássico, porque além de herói, ele é um poeta, um artista capaz de aplacar a fúria das sombras do inferno com seu canto e sua lira”, reflete.
Ela ressalta ainda as exigências físicas e vocais: “Ele tem monólogos, tem reflexões consigo mesmo, ele declama os versos, todos muito bem construídos, as árias são todas muito líricas. Ele tem uma espécie de superpoder que vem do conhecimento, porque na mitologia clássica acredita-se que a alma é alimentada pelo conhecimento, ela é construída com o conhecimento. Então, estou tendo que me preparar muito para construir esse protagonista e conseguir transmitir tudo isso em cena”.
No dia 4, o personagem será interpretado pelo barítono Vítor Monte. “É um desafio interpretar o personagem em si, já que ele passa muito tempo no palco e isso é exaustivo tanto fisicamente quanto vocalmente. Outro grande desafio tem sido o de expressar a carga emocional, porque é um personagem que passa por uma dor intensa, e essa paleta de emoções é muito diferente do que eu estou habituado a corporificar no palco”, conta. Para ele, a leitura proposta por Eduardo Machado e Jackson Guedes é “completamente nova e revolucionária”.
Eurídice é vivida pela soprano Karina de Sousa. “Fazer a protagonista da ópera é parte da realização de um sonho, e o sonho é de estar no palco, viver para estar nele e dele tirar forças para viver. Então, estou me dedicando há alguns meses ao estudo do personagem, me aprofundando em sua complexidade musical e histórica. Apesar das dificuldades, a satisfação e plenitude preenchem meus dias”, declara.
O papel de Amore será dividido entre Priscila Laís Coelho de Souza e Gabriela Bork. “Interpretar o personagem Amore, ou cupido, é um elemento desafiador, porque é justamente ele o responsável por mudar o curso de toda a história. Ele traz esperança e vida em meio a um contexto muito trágico que essa obra tem”, descreve Priscila. “É a oportunidade da gente poder revisitar o passado no presente, e ajudar a eternizar esses registros culturais importantes de civilizações antigas”.
Entre o mito e a cena
A ópera foi estreada em 1762, em Viena, com libreto de Ranieri de Calzabagi, inspirado nas Geórgicas de Virgílio. Eurídice morre ao ser picada por uma serpente, e Orfeu desce ao submundo para resgatá-la. O Deus do Amor impõe a condição de que não olhe para a amada até cruzarem o rio Estige. Ele acalma as Fúrias com o canto, mas a tragédia se consuma quando cede à tentação de olhar para trás.
É essa tensão entre arte, amor e perda que os artistas do Basileu França levam ao público goiano. Como lembra Eduardo Machado, o papel de Orfeu foi criado no século 18 para vozes de castrati, prática hoje extinta, mas que abre espaço para interpretações femininas, como a de Rafaela Duria. Em três noites, a tradição se renova no palco goiano, em uma montagem que também funciona como vitrine pedagógica do Basileu França, reunindo alunos de música, dança e teatro diante de uma das obras mais complexas da ópera.