Bolsa Família não provocou “fuga do trabalho” e nem gerou informalidade
Ao contrário do que sugere o senso comum e mesmo alguns “especialistas” com diploma e espaço garantido na grande imprensa, os efeitos do Programa Bolsa Família sobre o mercado de trabalho são bem mais complexos do que se costuma argumentar. O programa não está por trás da recente “falta de mão de obra” indicada por setores da economia e que se tornou fonte de reclamações frequentes, sobretudo de “donas de casa” que relatam dificuldades para contratar faxineiras, diaristas e trabalhadores domésticos em geral.
Em nota técnica publicada neste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os técnicos Ricardo Campante Vale e Fábio Veras Soares analisaram microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNADC) para responder a uma questão tripla: qual o efeito causal do aumento do valor das transferências de renda sobre a participação na força de trabalho, sobre o número de horas trabalhadas entre os ocupados e sobre a qualidade da inserção no mercado (formalidade)?
Como mostrado em O Hoje no dia 19.11.2025, a taxa de participação na força de trabalho entre pessoas em idade ativa vem recuando e permanecendo abaixo do nível pré-pandemia. Ao mesmo tempo, cresce o número de indivíduos que deixaram o mercado — a chamada população “fora da força de trabalho”. Esses movimentos poderiam sugerir que as mudanças no Bolsa Família estariam levando trabalhadores a desistirem de buscar emprego ou a migrarem para a informalidade para garantir o benefício. No entanto, os dados não confirmam essa hipótese. A informalidade permanece elevada, mas estável, em torno de 38% dos ocupados, semelhante às taxas entre 2017 e 2019, quando superava 40%.
“Fuga da precariedade”
A combinação das evidências analisadas pelos pesquisadores “constrói uma narrativa coerente” e demonstra que não existe desincentivo generalizado ao trabalho. Ao contrário, o Bolsa Família tem produzido efeitos concentrados especialmente entre indivíduos que já estavam desocupados ou inseridos em ocupações frágeis, sem estabilidade — sobretudo trabalhadores por conta própria sem vínculo empregatício. Vale e Soares afirmam que os dados apontam para um fenômeno que pode ser caracterizado como uma “fuga da precariedade”.
Balanço
• O aumento do valor do Bolsa Família atuou como uma espécie de seguro de renda, permitindo que um grupo específico — mulheres com responsabilidades de cuidado e inseridas em ocupações de baixíssima qualidade — realocasse seu tempo do mercado de trabalho para tarefas não remuneradas de cuidado doméstico. Essas atividades têm alto valor para o bem-estar familiar, embora sejam classificadas como “inatividade” pela metodologia da PNADC.
• Ao comparar o perfil dos beneficiários do programa em 2022 que se tornaram inativos em 2023 com o perfil geral dos beneficiários, os pesquisadores identificaram que a evasão da força de trabalho se concentrou nas ocupações mais precárias e informais. Trabalhadores desocupados eram 16,7% dos beneficiários, mas representaram 28,5% dos que saíram da força de trabalho.
• Trabalhadores domésticos sem carteira representavam 9,4% dos beneficiários, mas 11,4% dos novos inativos. Já os prestadores de serviços auxiliares às famílias passaram de 4,1% dos beneficiários para 6,5% dos que deixaram o mercado. Juntas, essas categorias formavam 30,3% dos beneficiários, mas responderam por 46,3% dos evasores.
• Em contraste, trabalhadores com carteira assinada — 12,6% dos beneficiários — representaram apenas 3,9% dos que deixaram a força de trabalho. Isso reforça a evidência de que a queda na taxa de ocupação está associada à saída de posições precárias, e não à informalização causada pelo aumento do benefício.
• O perfil sociodemográfico dos que deixaram o mercado mostra um padrão consistente: a evasão foi maior entre mulheres (43% dos beneficiários e 61% dos evadidos), especialmente aquelas com crianças de até 10 anos (24% dos beneficiários e 38% dos que saíram).
• Há também maior incidência entre moradores do Nordeste (48% dos beneficiários e 59% dos evadidos) e da zona rural (24% dos beneficiários e 38% dos evadidos), além de trabalhadores com menor escolaridade e famílias com renda líquida mais baixa.
• Entre os motivos declarados para sair do mercado de trabalho, 34,4% mencionaram a necessidade de “cuidar dos afazeres domésticos, de filho(a) ou outro parente”. Para os pesquisadores, esse dado conecta diretamente o perfil predominante — mulheres com filhos — com a decisão de se afastar, reforçando a importância da economia do cuidado.
• Os autores sugerem que políticas públicas, além da transferência de renda, devem ampliar investimentos em serviços de cuidado infantil e assistência a idosos, essenciais tanto para o bem-estar quanto para reduzir o custo — especialmente para mulheres — de permanecer no mercado formal.