A oportunidade para reconstruir o complexo industrial da saúde

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 21 de julho de 2022

Entre outras lições, a pandemia e seus efeitos dramáticos para a população, agravados pela ausência de políticas coordenadas e baseadas em ciência, pelo abandono, pelo descaso e pela malversação de recursos públicos na área da saúde, deixaram mais nítida a necessidade de uma estratégia para desenvolvimento de um parque de produção de insumos e de medicamentos que possa reduzir a dependência do País em relação a fornecedores estrangeiros e assegurar autonomia num setor essencial para as pretensões de reconstrução da indústria nos próximos anos.

Toda a articulação construída a duras penas a partir do final da primeira década dos anos 2000 para promoção do chamado complexo industrial da saúde foi desmantelada pelo desgoverno instalado em Brasília. Durante a pandemia, ainda não debelada, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi submetido ao “maior teste de resiliência em toda sua história”, afirma Alexandre Padilha, deputado federal (PT/SP), ex-ministro da Saúde (2011-2014). Sob vários aspectos, os investimentos injetados no sistema ao longo de décadas (e totalmente revertidos nos últimos três anos) asseguraram sua resiliência.

Padilha lembra que o País só pôde iniciar a produção das vacinas contra o Covid-19 por conta daqueles investimentos, que ajudaram a implantar, tanto no Instituto Butantã, quanto na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e em seu Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Biomanguinhos/Fiocruz), plataformas tecnológicas que tornaram possível a rápida multiplicação das vacinas em território nacional, mesmo enfrentando o boicote intencionalmente promovido pelo desgoverno.

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No caso do Butantã, lembra o ex-ministro, a produção de vacinas tornou-se possível em função de investimentos realizados há quase uma década para a transferência de tecnologia para a fabricação da vacona contra o HPV. “Na época, a patente dessa vacina era de uma empresa internacional (MSD, subsidiária da empresa Merck). Quando decidimos incorporar essa vacina no SUS, na prática, iria ser o maior programa público de vacinação contra HPV, então negociamos a transferência de tecnologia dessa empresa internacional para o instituto”, reconta Padilha. No Biomanguinhos, da mesma forma, o processo de transferência de tecnologia para a produção de alfaepoetina (eritropoetina humana recombinante) dotou o instituto “de uma plataforma e produção de biológicos que permitiu que ela pudesse participar da produção da vacina da Astra Zeneca”, acrescenta ele. Aquele “teste de resiliência”, reforça o ex-ministro, trouxe como lição “a importância de dotar o Brasil de maior capacidade nacional de produção de insumos, de vacinas, de medicamentos”. Assim como demonstrou o “papel muito importante dos laboratórios públicos e do poder de compra governamental no Ministério da Saúde para induzir essas transferências de tecnologia, aumentar a produção de tecnologias, medicamentos e vacinas aqui no Brasil”.

Vantagem estratégica

O País dispõe de uma vantagem estratégica em relação a outras nações que, desde a pandemia, buscam fórmulas e caminhos para ganhar autonomia na produção de insumos farmacêuticos, medicamentos e vacinas, e esta vantagem está precisamente na existência do SUS e de um mercado formado por mais de 200 milhões de brasileiros. “Não podemos perder essa oportunidade que existe hoje pelo fato de os países, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos, estarem buscando ficar mais independentes da Índia, China e Coreia do Sul em função inclusive do susto que tomaram durante a pandemia para a produção de medicamentos, de insumos e equipamentos, e estão buscando outras complementariedades nessas cadeias. O Brasil tem a grande oportunidade de ocupar esse espaço pelo tamanho de seu mercado público, pela capacidade e qualidade dos pesquisadores e pelos profissionais em saúde que tem”, afirma Padilha.

Balanço

  • Para isso, no entanto, o País terá que enfrentar uma longa lista de desafios, a começar pela defenestração do atual desgoverno. Na sequência, retoma Padilha, será preciso que o Ministério da Saúde retome sua capacidade de coordenação e de tomada de decisões baseadas em evidências científicas e nos interesses mais amplos da população.
  • “Tínhamos no Brasil um grupo executivo do complexo econômico-industrial da saúde, coordenado pelo ministério, envolvendo ainda os ministérios da Ciência e Tecnologia, da Fazenda, do Planejamento, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), em parceria com associações do complexo econômico-industrial da saúde, setores da indústria farmacêutica, de equipamentos, setor de serviços”.
  • Aquele grupo executivo “definia diretrizes para o uso do poder de compra governamental, do Ministério da Saúde, assim como para o uso de recursos da Ciência e Tecnologia, das políticas de crédito do BNDES e de outros bancos para estimular o aumento da capacidade nacional de produção de medicamentos, tecnologia e serviços” associados à saúde pública.
  • Na sua avaliação, esse tipo de “coordenação é fundamental, porque a única chance de o Brasil aumentar sua capacidade nacional de produção de tecnologia, sobretudo inovadora no campo da saúde, é utilizar ao máximo o potencial do chamado mercado público brasileiro, do poder de compra do Ministério da Saúde, dos Estados e municípios, porque é esse mercado público, para 200 milhões de brasileiros, que viabiliza um projeto de transferência de tecnologia. Foi esse mercado público que fez com que o Brasil voltasse a produzir insulina”, lembra ainda.
  • Interrompida ao longo do processo de abertura do mercado e de internacionalização de setores estratégicos, a produção de insulina foi retomada por volta do início de 2013, com a instalação em Minas Gerais, pela Biomm, empresa derivada da Biobrás, que acabou engolida pela multinacional Nordisk, de uma fábrica de insulina. Na época, o empreendimento envolveu ainda parceria com o BNDES e Farmanguinhos, num investimento estimado em R$ 430,0 milhões.
  • O potencial para desenvolvimento de um complexo industrial da saúde poderá ser reforçado, na visão de Padilha, por iniciativas destinadas a ampliar o mercado público no País. Para isso, será fundamental “enfrentar o tema do subfinanciamento do SUS”, dotando o sistema de “uma proposta decente de recursos”.
  • “Isso é decisivo se queremos entrar na fronteira da produção e da inovação tecnológica em relação aos tratamentos de câncer, novas tecnologias de vacinas, produção de medicamentos para doenças crônicas no Brasil, inovação de equipamentos na área da saúde e se pretendemos entrar na área de serviços no campo da saúde digital. Para isso precisamos ter financiamento crescente para a área da saúde”, sustenta Padilha. Mais do que isto, será preciso transformar essas diretrizes e definições em uma política de Estado, o que reduziria os riscos de ter tudo desmontado por administrações desastrosas como a atual.