Coluna

Banco Central torrou US$ 31,2 bilhões das reservas do País para reduzir dívida

Publicado por: Sheyla Sousa | Postado em: 27 de fevereiro de 2020


houve um tempo em que as interferências do governo na gestão das contas
públicas animavam debates efervescentes, daqueles de derrubar governos e muito
mais. Antecipar receitas e retardar despesas, aliás, eram considerados atos
condenáveis e seus perpetradores deveriam queimar eternamente em algum inferno
fiscal (deve existir um, pelo tom incandescente de analistas, críticos de
ocasião e aproveitadores em geral). Mas isso parece tudo parte de um passado
remoto, que os mesmos críticos e analistas gostariam de esquecer.

Tente
imaginar, por um milésimo de segundo apenas, raro leitor e rara leitora, qual
seria a reação de todo aquele pessoal se lá atrás (mas nem tanto assim) o
governo decidisse torrar US$ 31,208 bilhões das reservas internacionais do País
para abater de sua dívida, produzindo uma redução totalmente artificial (de
alto risco, mas não ilegal) dos níveis de endividamento do setor público
consolidado (nome pomposo escolhido pelos economistas para se referir aos números
somados da União, dos Estados, das prefeituras e de suas estatais).

Acrescente
a essa providência totalmente “heterodoxa” a decisão de obrigar um banco
público a antecipar o pagamento de obrigações ao Tesouro Nacional, sob risco de
reduzir sua importância no financiamento de investimentos privados a quase nada
(num momento em que uma alta mais sustentada do investimento poderia contribuir
significativamente para o crescimento da economia e a redução do desemprego).

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Bem,
os dois atos foram perpetrados em 2019. Nos dados do Banco Central (BC), as
reservas internacionais, acumuladas ao longo de anos, com esforço e sacrifício
pelo País, caíram de US$ 388,092 bilhões em junho para R$ 356,884 bilhões no
final de dezembro do ano passado, caindo 8,0% (com a perda daqueles US$ 31,208
bilhões). Em relatório recente, a Instituição Fiscal Independente (IFI),
organismo ligado ao Senado e dedicado ao acompanhamento do desempenho fiscal do
setor público, apontou que a venda de parte das reservas permitiu abater da
dívida pública bruta do governo geral (de novo, União, Estados e municípios)
algo como R$ 152,0 bilhões no ano passado.

Impacto duvidoso

O
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por sua vez, teve
que antecipar ao Tesouro Nacional perto de R$ 80,0 bilhões. Na soma das duas
operações, foram utilizados R$ 232,0 bilhões na redução da dívida pública
bruta, que recuou de 76,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2018 para 75,8% no
ano passado, num recuo equivalente a 0,7 ponto de porcentagem. Como se percebe,
o impacto líquido sobre a dívida bruta correspondeu a menos de 22% dos quase R$
232,0 bilhões utilizados, correspondendo a R$ 50,8 bilhões. Muito esforço para
um impacto duvidoso sobre o saldo da dívida. Na contabilidade do IFI,
descontados os efeitos das duas operações, a dívida teria estacionado em 79,0%
do PIB.

Balanço

·  
Entre
dezembro de 2017 e o mesmo mês de 2019, o Tesouro exigiu do BNDES o pagamento
antecipado de R$ 213,208 bilhões, reduzindo a “dívida” do banco de fomento em
52,4% no período (de R$ 407,031 bilhões para R$ 193,823 bilhões).

·  
Em
valores nominais, trata-se do número mais baixo para o fechamento de um exercício
fiscal desde dezembro de 2009, quando o saldo dos créditos do governo com o
BNDES somava R$ 129,237 bilhões.

·  
No
mesmo relatório, a IFI aponta que praticamente toda a melhoria observada no
resultado primário do governo central entre 2016, quando entrou em vigor o teto
para os gastos públicos, e 2019 deveu-se à entrada de receitas extraordinárias,
não recorrentes, que têm grande propensão a não se repetirem nos períodos
seguintes.

·  
O
déficit primário, que considera a diferença entre despesas e receitas,
descontando os gastos com juros, recuou de 2,57% para 1,31% do PIB naquele
período, expressando uma melhora equivalente a 1,26 pontos de porcentagem. A
despesa primária total, no entanto, flutuou de 19,93% para 19,86% do PIB, num recuo de 0,06 ponto (desempenho que esconde
cortes vigorosos nos investimentos públicos).

·  
A
receita líquida, descontada dos repasses de recursos a governadores e
prefeitos, evoluiu de 17,36% para 18,55% do PIB, em alta de 1,20 pontos. Quer
dizer, o ganho de receita foi responsável por 95,2% do ajuste ocorrido no
período (com contribuição marginal de 4,8% no lado das despesas).

·  
Para
avaliar o real desempenho das receitas, a IFI considera o valor bruto (sem o
desconto das transferências a Estados e prefeituras, que avançaram 0,35 pontos
de porcentagem sobre o PIB entre 2016 e 2019). Neste caso, a receita bruta
anotou uma variação de 1,55 pontos de porcentagem sobre o PIB.

·  
Mas
o grosso desse incremento veio de receitas que tendem a não se repetir no
tempo. A arrecadação de recursos com concessões e permissões aumentou em 0,94
pontos (60,65% do crescimento observado para o conjunto das receitas), enquanto
a “exploração de recursos naturais” (leia-se, os leilões de campos de petróleo)
aumentaram em 0,52 pontos de porcentagem (contribuindo com 33,5% para o aumento
das receitas totais do Tesouro).

·  
Os
dois itens explicam, portanto, praticamente 94,2% de todo o aumento observado
para as receitas brutas no período e tiveram participação fundamental na
redução do déficit primário. Sem esses efeitos, a queda do rombo teria sido
mais discreta.

·  
Vale
notar que as receitas diretamente influenciadas pelo comportamento da atividade
econômica cresceram quase nada.

·  
Excluída
das receitas a arrecadação líquida com os leilões de petróleo e descontada a
despesa adicional representada pela transferência de recursos para a Petrobrás,
por conta do acerto relacionado à cessão onerosa dos poços do pré-sal, o
déficit primário teria baixado de 2,57% para 1,61% do PIB, ficando 23% acima
daquele informado oficialmente para 2019 (1,31%).