Coluna Foco econômico
BC extrapola seus poderes e atropela o próprio Congresso
Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 29 de março de 2023![](https://ohoje.com/public/imagens/fotos/amp/2022/05/Lauro-Dinheiro-Generico-3-13-1024x615.jpg)
Quase dois terços da chamada dívida bruta do governo geral, principal indicador escolhido arbitrariamente pelo Banco Central (BC) para definir sua política de juros, guarda quase nenhuma relação com a execução da política fiscal. Dito de forma mais direta, aquela fatia da dívida está sujeita a outra sorte de fatores que pouco têm a ver com o comportamento das despesas primárias, que desconsideram todo o gasto com juros, embora estes desempenhem papel central no avanço do endividamento do setor público brasileiro.
Mas o tamanho da dívida e sua evolução recente continuam sendo utilizados marotamente para sustentar a retórica de descontrole das despesas públicas e fomentar um clima de pânico em relação à “solidez fiscal” do governo, como forma de justificar uma política de juros irracional e deletéria e dar sustentação a reformas ao gosto e feitio dos mercados. A manutenção de taxas de juros reais excessivamente elevadas, com raras inflexões para baixa ao longo de décadas, tem impedido que a economia cresça ao emperrar investimentos e a criação de empregos, concentrando todo o “ajuste” reclamado pelo setor financeiro e seus acólitos sobre as despesas primárias, penalizando os que mais necessitam do Estado e de políticas sociais.
Como observa com argúcia e maior precisão a professora Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, em artigo publicado ontem no site Consultor Jurídico, “a todo tempo, a tese de uma suposta insustentabilidade da dívida pública brasileira tem sido manejada como mecanismo de constrangimento pretensamente neutro e técnico em prol de determinado fluxo de agendas reformistas, cujas oportunidade e conveniência, todavia, apenas competem às instâncias político-democráticas do Estado deliberar”.
Ainda mais certeira, a procuradora identifica ausência de bases jurídicas e legais na atuação da autoridade monetária, relacionada a “omissões normativas sobre conceitos sensíveis”, a exemplo do que deveria ser considerado como limite para o endividamento público e, mais ainda, de quais indicadores de dívida deveriam ser tomados em consideração. No curso daquelas “omissões”, Élida aponta que a “discricionariedade” do BC tem sido “alargada de forma indevida”. Adicionalmente, relembra ela, “há severos impactos na dívida do manejo das políticas monetária, cambial e creditícia por aquela autarquia”.
Sem base legal
Mais claramente, prossegue a procuradora, “ao invocar como um dos motivos determinantes para a manutenção da taxa básica de juros a percepção de risco sobre revisão das regras fiscais brasileiras e, ato contínuo, sobre a trajetória da dívida pública, o BC extrapola sua competência legal e maneja uma razão frágil e insubsistente”. Entre outras razões, porque o aparato jurídico brasileiro não definiu uma regulamentação sobre o que pode ou não pode ser considerado como “trajetória sustentável da dívida”. Na ausência de uma lei complementar que o faça, acrescenta Élida, “não é permitido a uma instância incompetente para o controle das contas públicas (a autoridade monetária, que pode muito, mas não pode tudo) pretender apontar — ainda que implicitamente — suposto risco de insustentabilidade da trajetória da dívida pública brasileira”. Para reforçar, a autoridade monetária tem invadido terreno do legislador, atropelando o Congresso em sua função de criador de leis.
Balanço
- Há controvérsias mesmo nas formas de calcular a dívida dos governos, ainda que esse tipo de discussão jamais ocupe muito espaço na grande imprensa e no jornalismo dito “especializado”. A dados de janeiro deste ano, divulgados no final de fevereiro pelo BC, registram uma dívida bruta, na soma de todo o setor público, na faixa de R$ 7,257 trilhões, algo como 73,12% do Produto Interno Bruto (PIB), abaixo dos 86,94% alcançados em dezembro de 2020, sob impacto da pandemia. O fim dos créditos extraordinários abertos para o enfretamento da crise sanitária e o avanço nominal do PIB ajudaram a reduzir o endividamento desde lá.
- Mas o conceito de dívida bruta considera, por exemplo, créditos e outros haveres de caráter financeiro que não são deveriam ser classificados como dívida e ainda as chamadas “operações compromissadas”, utilizadas pelo BC para regular a oferta de dinheiro na economia (e que, da mesma forma, não têm caráter explícito de dívida).
- Como se sabe, com reservas próximas de US$ 331,122 bilhões ao final de janeiro deste ano, o Brasil mantinha inalterada sua condição de “credor líquido” no mercado financeiro internacional, o que significa dizer que suas reservas externas superavam o valor da dívida externa. Precisamente, o mundo devia liquidamente ao País algo como US$ 29,791 bilhões em janeiro. Mas, na composição da dívida bruta total, a dívida externa entra sem descontos, desconsiderando-se o tamanho das reservas, que correspondiam a 17,38% do PIB em janeiro passado.
- Além das reservas, o Tesouro mantinha, em sua conta no BC, um saldo de R$ 1,606 trilhão, perto de 16,18% do PIB, uma espécie de colchão de segurança para ser utilizado na gestão do serviço da dívida quando necessário (quer dizer, para pagar juros e amortizar títulos da dívida). Apenas os dois itens correspondiam, em janeiro, a um terço do PIB (33,56%), somando inacreditáveis R$ 3,331 trilhões em créditos a favor do Estado brasileiro. Descontados apenas esses dois haveres financeiros, a dívida baixaria para 39,56% do PIB. Evidentemente, esse percentual não assustaria ninguém e não poderia justificar os juros astronômicos impostos ao País pelo BC.
- Em seu artigo, Élida acrescenta outro dado, ao lembrar que as operações compromissadas (venda de títulos pelo BC ao mercado mediante o compromisso de recompra futura) igualmente ajudam a compor a dívida bruta, ainda que funcionem apenas como instrumento para regulara a liquidez no mercado. Também em janeiro, aquelas operações atingiram pouco mais de R$ 1,144 trilhão, correspondendo a 11,53% do PIB.
- Sua substituição por depósitos voluntários remunerados, como operam as maiores economias do mundo e conforme já prevê a Lei 14.185, de 14 de julho de 2021, ajudaria a reduzir a dívida bruta para 61,59% (embora a mudança, por motivos que o espaço não permite detalhar, tenha impacto sobre a dívida líquida). Somando operações compromissadas, reservas internacionais e a conta única do Tesouro, nada menos do que 45,09% do PIB ou 61,7% da dívida bruta total são determinados por outros fatores que não as despesas primárias. Isso mostra como os conceitos são fluidos e sujeitos a debate, que continua sendo interditado pelos mercados.