Conceição Evaristo desconstrói o patriarcado em romance sobre afetos negros

Em seu quinto romance, Canção para ninar menino grande, a escritora mineira Conceição Evaristo rompe com o protagonismo feminino habitual em sua obra para narrar, sob a perspectiva de múltiplas mulheres, a trajetória errante de Fio Jasmim, homem negro e ferroviário que atravessa cidades e corpos, sem criar vínculos afetivos. A história, agora parte da lista obrigatória da Fuvest 2026, desmonta com precisão literária os mecanismos afetivos e sociais que estruturam o patriarcado brasileiro.
A construção do personagem central se dá a partir das vozes das mulheres que ele seduz, abandona ou marca de forma irreversível. Ao mesmo tempo, a figura de Fio Jasmim, como aponta a pesquisadora Maria Paula de Jesus Correa, é polifônica: ele é ao mesmo tempo vítima e reprodutor da lógica patriarcal. A autora se vale da escrevivência — conceito que mistura vivência, ancestralidade e escrita — para dar forma a uma narrativa onde o afeto é fraturado, e a masculinidade negra, muitas vezes invisibilizada, ganha densidade e contradição.
A cada mulher que cruza seu caminho — como Neide, que pede um filho mas não deseja um pai, ou Angelina, cuja morte revela o descaso de Fio pelos sentimentos alheios —, o leitor não apenas conhece fragmentos da vida do protagonista, mas compreende o impacto do abandono e da negligência emocional. O fio condutor da narrativa, mais do que o próprio Jasmim, é a escuta sensível e atenta da narradora que recolhe memórias, dores e desejos dessas mulheres, construindo uma contra-história do masculino.
A segunda edição do livro, lançada em 2022, não apenas revisita trechos da narrativa, como resgata a voz de personagens antes silenciadas. A nova capa, com a imagem de um homem negro sem rosto refletido de costas no espelho, metaforiza essa ausência de subjetividade que marca a experiência de Fio. “Ele representa um modelo de masculinidade que se desintegra ao longo da narrativa, até restar apenas o eco de suas escolhas e omissões”, aponta a análise crítica da obra.
Ao final, é Juventina, uma das ex-amantes, quem assume o papel de narradora e autora. Em um gesto simbólico e literário, ela escreve a canção que embala e enterra a memória de Fio Jasmim. Mais do que um romance sobre amores desfeitos, Canção para ninar menino grande é um retrato multifacetado da dor, da memória e da possibilidade de reinvenção, onde cada mulher resgata sua própria voz — e onde o “menino grande” precisa, enfim, dormir.
A autora
Maria da Conceição Evaristo de Brito é uma linguista e escritora brasileira. Agora aposentada, teve uma prolífica carreira como pesquisadora-docente universitária. É uma das mais influentes literatas do movimento pós-modernista no Brasil, escrevendo nos gêneros da poesia, romance, conto e ensaio