Concentração da renda dispara no País (e em Goiás) após a pandemia
Praticamente um quarto de toda a renda recebida pelo total das famílias no País e em Goiás foi apropriado por apenas 1% dos muito ricos. O cenário é ainda mais alarmante quando se observa o comportamento da renda entre quase 160,2 mil brasileiros, dos quais pouco menos de 5,1 mil goianos, que representam o 0,1% entre os mais ricos ainda. Esse contingente apropriou-se de 12,5% da renda total das famílias na média de todo o País e também em Goiás em 2023, segundo mostra a nota técnica “Concentração de renda no Brasil: o que os dados do IRPF revelam?”, elaborada pelos economistas Frederico Nascimento Dutra, Priscila Kaiser Monteiro e Sérgio Wulff Gobetti e divulgada no portal FiscalData.
A plataforma foi desenvolvida, conforme descrição do site, por um “grupo de pesquisadores dedicados a garimpar e lapidar as bases de dados públicas com objetivo de contribuir com o debate dos grandes temas da política fiscal e tributária do País”. Para melhorar a captação dos dados sobre a renda, Dutra, Kaiser e Gobetti trabalharam com dados do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), que consegue registrar com maior precisão os rendimentos realizados pelos mais ricos, das contas nacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da matriz de benefícios sociais e salários da União, dos Estados e dos municípios, o que permitiu estimar a renda disponível das famílias em cada Estado.
Segundo o trabalho, “a concentração de renda nos estratos do 1% e do 0,1% mais ricos cresceu significativamente no período pós-pandemia de Covid-19, atingindo o maior nível da série histórica iniciada há quase duas décadas”. Considerando apenas o período entre 2017 e 2023, quando a série histórica fornece dados mais uniformes e comparáveis, observam aqueles economistas, a participação do 1,0% mais rico na renda disponível bruta das famílias avançou de 20,4% para 24,3% (ou seja, 3,9 pontos percentuais a mais) e atingiu, em Goiás, algo em torno de 24,0% ao final daquele intervalo.
“São Paulo, Goiás e Paraná (…) apresentam índices de concentração superiores à média nacional, entre 25% e 27%, com crescimentos igualmente superiores à média”, registra o estudo, que sugere distorções mais acentuadas nas regiões onde é maior a influência do agronegócio, assim como entre as economias regionais mais desenvolvidas.
Notavelmente, o que apenas demonstra o nível extremado da desigualdade de renda no País, nada menos do que 85% daquele acréscimo de 3,9 pontos foram apropriados pelo 0,1% entre os mais ricos ainda e metade desse ganho foi capturado pela fatia de 0,01% entre os muito mais ricos. “Ou seja, trata-se de um processo de concentração acentuado e restrito ao topo da pirâmide, composto por pessoas com renda anual superior a R$ 1,7 milhão”, registra a nota técnica.
Discrepâncias também no Estado
Os dados para Goiás, referentes a 5.050 pessoas que em 2023 tiveram uma renda média de R$ 5,213 milhões e um rendimento total de R$ 26,328 bilhões, instalados entre o 0,1% mais rico, mostram que a participação na renda total desse contingente ultraprivilegiado saltou de 9,1% para 12,5%, coincidindo com a variação observada para o mesmo segmento em todo o País.
O Estado apresentou a quarta pior distribuição de renda no País, num ranking pernicioso e liderado por Mato Grosso, onde a fatia do 0,1% mais rico avançou de 9,7% para 17,4% – o pior índice entre todos os Estados. No segundo lugar, em São Paulo, a participação elevou-se de 11,2% em 2017 para 14,8% em 2023. Ainda em Mato Grosso, a participação do 1% mais rico passou de 20,3% para 30,5%, bem acima da média.
Balanço
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A valores de 2023, com atualização pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), num cálculo desta coluna, a renda disponível bruta das famílias em Goiás registrou um avanço real em torno de 23,0% entre 2017 e 2023, mas a renda do 0,1% muito rico saltou 53,9%, igualmente acima da inflação acumulada no período.
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Na média do País, agora nas estimativas da nota técnica preparada pelo trio de economistas, enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) acumulou crescimento real de 11,0% naqueles seis anos, a renda bruta disponível variou 8,7% para o total das famílias, o que fez a fatia da renda familiar no PIB ser reduzida de 71,4% para 69,9%. Enquanto a renda do 1% mais rico cresceu 29,7% em termos reais, registrou-se alta de 48,8% para a faixa de 0,1% mais rico – “cinco vezes o avanço da renda média do brasileiro no mesmo período” – e um salto de 58,1% para os rendimentos daqueles instalados entre o 0,01% muito mais rico.
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Num complicador adicional, o trabalho verificou que “90% do aumento da concentração no topo – entre os milionários situados nos 0,1% mais ricos – é explicado pelas rendas do capital, sendo 66% atribuídos a lucros e dividendos distribuídos”. Os dados mostram claramente que “o crescimento das rendas do capital, substancialmente acima das rendas do trabalho, embora se explique em parte pelo processo de ‘pejotização’, beneficiou majoritariamente os estratos de altíssima renda”.
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Para dar uma dimensão mais precisa daquela tendência, o estudo mostra, sempre em termos reais, que a renda do 0,1% mais rico cresceu, “em média, 6,9% ao ano, enquanto a renda das famílias cresceu apenas 1,4% ao ano. Entre o 0,01% mais rico, a expansão é ainda maior: 7,9% ao ano”.
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Ainda entre o 1,0% mais rico, excluída a fatia de 0,1% ainda mais rico, teve renda anual entre R$ 360 mil e R$ 1,7 milhão (R$ 30 mil e R$ 140 mil mensais, respectivamente). “Nesse intervalo de renda, muitos profissionais liberais passaram, cada vez mais, a recorrer à constituição de empresas para prestar serviços com menor carga tributária. Nesses casos, a renda do trabalho é convertida em renda de capital, sob a forma de lucros e dividendos”.
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Diante de todas as evidências encontradas naqueles dados, a nota técnica identifica “um quadro preocupante de concentração de renda – sobretudo no contexto de baixo crescimento econômico dos últimos anos – que parece não ter sido devidamente captado por diferentes estudos e pesquisas, e que merece reflexão, tanto para compreender seus fatores explicativos quanto para formular políticas para sua reversão ou atenuação”.
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Os ganhos nas faixas de renda muito mais elevada foram turbinados pela farta distribuição de lucros e dividendos, que continuam isentos de impostos no País. Num cenário assim, acrescenta o trabalho, “a pergunta que instiga análise mais aprofundada é: como podem os lucros ter crescido tanto, e de forma tão concentrada, no período recente, se o PIB, em termos reais, cresceu tão pouco?”.
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Uma hipótese levantada pelo estudo sugere que a inflação doméstica elevada, associada à tendência de alta nos preços internacionais das commodities, sobretudo grãos, teria sido um dos fatores a alavancar os lucros “obtidos por grandes empresários e exportadores, embora o volume de produção tenha se mantido com crescimento modesto, assim como a massa salarial”.
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Segundo o estudo, as políticas públicas de transferência de renda de fato cumpriram papel relevante na redução da pobreza e na “atenuação da desigualdade na base da pirâmide social nas últimas três décadas”. Mas não serão suficientes “para enfrentar os problemas atuais que estão na raiz do aumento da concentração”.
Por isso, seria o momento, agora, para a política tributária voltar a operar como instrumento para redistribuir a renda, “começando pela revisão de todos os tratamentos especiais e privilegiados dispensados a certas classes de rendimento no Brasil – não apenas lucros e dividendos, mas também rendas isentas da atividade rural e diversos tipos de títulos financeiros igualmente isentos ou subtributados”.
Uma política nessa linha, além de enfrentar a concentração desenfreada, ajudaria a tornar a economia brasileira mais eficiente, já que “muitas das brechas e distorções que hoje beneficiam o topo da pirâmide social brasileira também parecem ser prejudiciais à competitividade e ao desenvolvimento econômico”, conclui o trabalho.