Ernesto Mané revisita raízes africanas em estreia literária potente sobre pertencimento e abandono
Em sua estreia na literatura, o físico e diplomata Ernesto Mané transforma uma viagem de retorno à Guiné-Bissau em um diário vívido e doloroso sobre identidade, abandono e herança africana. Antes do início, primeiro título lançado pela Tinta-da-China Brasil, é mais do que um relato autobiográfico. É uma travessia entre continentes, tempos e afetos, marcada por memórias fragmentadas, desconfortos culturais e o reencontro com uma história familiar soterrada por ausências.
Nascido no Brasil, filho de mãe paraibana e pai guineense, Mané cresceu sentindo os efeitos de uma dupla orfandade: a de quem vive numa sociedade que marginaliza a negritude e a de quem nunca conheceu, de fato, o próprio pai. Décadas depois, já doutor em física, com passagens por centros de excelência científica no exterior, ele resolve atravessar o Atlântico para tentar compreender o homem que o abandonou e o país que lhe corre nas veias, e do qual, até então, pouco sabia.
A jornada, realizada em 2010, é o cerne do livro. O autor registra o reencontro com avós e parentes em Bissau. Lá, é chamado de “branco” pelas roupas e modos. Aprende a comer com as mãos na mesma tigela dos familiares. Carrega pelas ruas uma galinha viva, presente recebido num gesto cotidiano. Cada episódio se torna metáfora de um deslocamento: cultural, emocional, histórico. O cientista escreve como quem procura ajustar lentes turvas entre dois mundos.
A figura do pai é o fio condutor do conflito. Ex-militante da luta de independência guineense e bolsista do Itamaraty nos anos 1970, o homem abandona duas famílias em dois países diferentes. O livro não oferece respostas fáceis. Questiona, antes, o que significa ser “sacana” ou “sobrevivente” diante de traumas coloniais e raciais. Mané encontra nos relatos dos parentes e nos silêncios herdados um material bruto e sensível que molda com precisão literária e honestidade desarmante.
A experiência pessoal se amplia em crítica política. O autor se espanta, por exemplo, com o apagamento do crioulo, língua falada por toda a população guineense, mas ignorada pelas instituições oficiais e excluída de sua própria formação. Na ausência do idioma paterno, ele compartilha com os meninos da rua a capoeira angola, gesto de retorno que conecta as margens da kalunga por outro caminho: o da cultura negra em movimento.
O diário, escrito à quente durante a viagem, tem a fluidez de quem observa o mundo com rigor e afeto. No retorno ao Brasil, já diplomata aprovado por ação afirmativa, Mané carrega outra cidadania, formal e simbólica: a da Guiné-Bissau, oficializada pelo passaporte que passa a ter em mãos. Ao mesmo tempo, desloca o olhar novamente para o Brasil, questionando as políticas de memória, os apagamentos históricos e os legados do racismo estrutural.
Antes do início é um livro necessário, que recusa a exotização da África e também o cinismo da neutralidade científica. Ao narrar sua viagem como quem atravessa camadas, Ernesto Mané entrega uma obra que não se limita ao autorretrato. É um gesto político e poético que, ao aproximar Brasil e África, devolve à literatura seu papel de reconexão com o que fomos, o que somos e o que ainda podemos ser.
O autor
Ernesto Mané (João Pessoa, 1983) é brasileiro e guineense. Doutor em física nuclear pela Universidade de Manchester, no Reino Unido, realizou pós-doutorado no laboratório canadense Triumf. Ingressou na carreira diplomática em 2014, por meio do Programa de Ação Afirmativa para Afrodescendentes do Instituto Rio Branco. Foi pesquisador visitante na Universidade de Princeton, nos EUA, entre 2019 e 2020. Também em 2019, foi reconhecido pelo Mipad (Most Influential People of African Descent) como um dos cem afrodescendentes com menos de quarenta anos mais influentes do mundo na área de política e governança. Serviu na Embaixada do Brasil em Washington entre 2021 e 2025, e atualmente serve na Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Antes do início é seu livro de estreia.
