Governo gastou 58% a mais com juros do que no combate à Covid

Publicado por: Lauro Veiga Filho | Postado em: 07 de dezembro de 2022

Instalada com especial ferocidade nas primeiras semanas de novembro, o ataque fiscalista tem alvo certo e definido, a saber, retomar o “austericídio” como parte do objetivo mais amplo de desmontar o que resta do ainda incipiente Estado de bem-estar social no País. Na agenda dos “austericidas”, os gastos supostamente excessivos do poder público estariam por trás do crescimento da dívida pública, causando inflação e justificando a política (quase) permanente de juros altos. Aqui, a prática de juros extorsivos, atualmente entre os mais elevados em todo o planeta, surge como política única de controle de preços, com conservadores e ortodoxos a favor do mercado convenientemente deixando de lado os efeitos devastadores das despesas geradas pela necessidade de honrar o serviço da dívida, vale dizer, pagar juros e amortizações aos “donos” da dívida pública.

O desajuste fiscal gerado pelos juros abusivos é literalmente varrido para debaixo do tapete no debate econômico, com raras menções aos impactos gerados pelos juros sobre a integridade fiscal do setor público. Aliás, o “risco fiscal” é quase sempre atribuído a incrementos eventuais de despesas com setores que atendem diretamente à população e, em especial, aos mais vulneráveis. Parece haver uma certa unanimidade em relação à necessidade de o governo ter mesmo reforçado as despesas destinadas ao combate à Covid-19 e a seus efeitos. Parecia ser o certo a ser feito e era mesmo, ainda que para alguns tenham ocorrido excessos, especialmente na visão dos mais conservadores.

Considerem, rara leitora e raro leitor, o período entre fevereiro de 2020 e outubro de 2022, dado mais recente divulgado pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN). As despesas com a Covid-19 somaram algo próximo a R$ 665,046 bilhões em valores nominais, em torno de 6,9% do Produto Interno Bruto (PIB) acumulado em 12 meses até outubro deste ano. A conta inclui socorro a pequenas e médias empresas, ajuda a Estados e municípios, o auxílio emergencial, benefícios a empresas para manutenção de empregos, gastos extraordinários do Ministério da Saúde e de outros ministérios, entre outras despesas, incluindo mesmo a cobrança de multas pelo atraso no pagamento da conta de eletricidade nas residências.

Continua após a publicidade

Estrago dos juros

Parece muito? Nem tanto, quando são considerados todos os recursos desviados para o pagamento de juros no mesmo intervalo, tema sempre ausente na “agenda” conservadora, como a leitora e o leitor sempre atentos já puderam perceber. Novamente em valores nominais, quer dizer, sem atualização com base na inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), os juros da dívida causaram um “estrago” superior a R$ 1,051 trilhão nas contas públicas, algo em torno de 10,9% do PIB. Mais concretamente, o governo gastou R$ 368,323 bilhões ou 58,09% a mais do que a despesa com a pandemia simplesmente para remunerar os “donos” da dívida pública, que não produziram um mero parafuso e limitaram-se a emprestar parte de suas fortunas ao governo. Uma grana que sequer trará ao setor público o retorno correspondente em impostos e tributos, contribuindo apenas para gerar a necessidade de novos pagamentos aos “ donos” da dívida mais adiante.

Balanço

  • Na cartilha seguida pelos heterodoxos, rombos entre receitas e despesas obrigam o governo a emitir mais e mais títulos, produzindo um efeito de “bola de neve” sobre sua dívida, que continuaria crescendo descontroladamente até que gestores públicos se disponham a impor um freio aos gastos. E se você “descobrir” que a dívida continuaria crescendo mesmo se o governo tivesse zerado seu déficit?
  • O questionamento parece desconexo e sem fundamento? Pode ser que sim, mas pode ser que não. Os dados do Banco Central (BC) parecem indicar que a questão não seria assim tão sem fundamento. Tomando sempre valores nominais, o saldo da dívida bruta do governo central, que inclui a União, os Estados, as prefeituras e estatais, cresceu impressionantes 373,01% entre dezembro de 2007 e outubro de 2022, saltando de R$ 1,543 trilhão para R$ 7,298 trilhões, em valores aproximados. Em termos reais, descontada a variação do IPCA naquele mesmo período, a dívida dobrou de tamanho.
  • Em relação ao PIB, de volta aos dados nominais, a dívida bruta passou a representar 75,70% em outubro deste ano, já considerando a nova série do IBGE sobre as contas nacionais, atualizadas recentemente para os períodos de 2020, 2021 e os primeiros trimestres de 2022. A comparação, no caso, se dá entre o saldo devedor e o tamanho do PIB medido entre o quarto trimestre de 2021 e o terceiro trimestre de 2022. Para comparação, em 2007, a dívida representava 56,71% do produto.
  • Em quase 15 anos, a dívida foi inchada em R$ 5,755 trilhões, uma enormidade. O BC divulga também uma planilha com os fatores que condicionam a variação da dívida bruta ao longo de períodos determinados no tempo. Essa séria histórica é ainda mais reveladora. Ao longo desses 178 meses, o governo contratou apenas R$ 90,974 bilhões em dívidas de fato novas, o que explica apenas 1,58% do aumento do saldo devedor ao longo do período analisado. Ajustes de câmbio (causados pela flutuação do dólar em relação ao real) e reconhecimento de dívidas, além de outros ajustes que ajudaram até a reduzir um pouco o endividamento, somaram perto de R$ 306,245 bilhões, correspondendo a 5,32% da variação acumulada pela dívida bruta.
  • Todos os fatores acima somados justificaram apenas 6,90% do aumento verificado para o saldo da dívida bruta. Claramente, o grosso do crescimento veio de outros fatores e aqui o papel dos juros não pode e nem deveria ser desprezado. Os valores dos juros apropriados pelo estoque da dívida ao longo daqueles anos alcançaram nada menos do que R$ 5,538 trilhões, alguma coisa como 55,57% do PIB. Para ser mais claro ainda, a conta dos juros explicou 93,1% do aumento da dívida em quase uma década e meia.
  • Foi preciso, portanto, “financiar” essa conta, por meio do lançamento, ou seja, da venda ao mercado de novos títulos de dívida, já que os governos não conseguiram gerar saldo suficiente para cobrir a despesa com juros. De resto, uma missão impossível, já que teria sido necessário produzir um superávit superior à metade do PIB para isso. Em conjunto, governo federal, governos estaduais e municipais geraram no período um déficit primário de R$ 465,598 bilhões (em torno de 4,83% do PIB). Esse valor correspondeu a 8,09% da variação observada para o estoque da dívida desde o final de 2007.
  • Tivessem os governos zerado o rombo, ainda assim a dívida bruta teria crescido 342,8% (significando R$ 5,289 trilhões a mais), pelo efeito dos juros acumulados sobre o saldo devedor.